A ESCOLA DOS ANNALES
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Marc Bloch
acervo de família
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No Iluminismo, temas sociais começaram a ganhar força e importância.
Autores como Voltaire se preocupavam com o que poderíamos chamar de história da
sociedade.
Outro exemplo de descontentamento pode ser encontrado na obra
"Declínio e queda do Império Romano" de Edward Gibbon, publicado em
1776.
Interessante notar que esse movimento de descontentamento sofreu um
inesperado golpe, um golpe, poderíamos afirmar, não intencional. O sucesso da
revolução científica na modernidade, liderada por nomes como Copérnico, Galileu
Galilei e Isaac Newton, inspirou todas as áreas do conhecimento, influenciando
inclusive a área de humanidades. O positivismo e a Escola Metódica de Ranke são
exemplos dessa influência. O positivismo, principalmente, adotou o método
científico como padrão de conhecimento. É notável, por exemplo, a influência do
positivismo no nascimento da sociologia. O cientificismo dos positivistas
inibiu consideravelmente a utilização da interpretação nos processos
históricos, inibiu também as análises culturais.
No século XIX, o nome de Ranke representou um grande reforço à história
política. Importante ressaltar que os interesses de Ranke não se limitavam à
história política, ele escreveu sobre a Reforma, a Contrarreforma e não
rejeitou a história social, a história da arte ou da ciência. Todavia, Ranke
passou a ideia de que a verdadeira história era a história científica, a qual é
baseada na pesquisa exaustiva de documentos oficiais. Esse modo de enxergar a
história fez com que os historiadores sócio-culturais parecessem meros
diletantes que estavam no caminho errado.
Certamente,
as críticas voltadas para o positivismo rankeano são melhor direcionadas para
os discípulos de Ranke. Para eles, a verdadeira história ou história científica
tinha que ser baseada em dois elementos: numa metodologia centrada na pesquisa,
busca e análise de documentos oficiais e, também, na pesquisa dos grandes
eventos políticos, centrados, principalmente, nos grandes líderes. Pode-se
afirmar que o radicalismo dos positivistas e dos rankeanos teve como reação o
radicalismo do grupo dos Annales, descontentes com a história política centrada
em fatos descarnados das dinâmicas sociais mais pulsantes e deixadas de lado
pelos historiadores profissionais.
O movimento dos Annales, em sua primeira geração, teve dois líderes
destacados: Lucien Febvre e Marc Bloch. Os dois historiadores franceses estavam
profundamente descontentes com o positivismo histórico. Esse descontentamento
se baseava nos temas históricos tradicionalmente abordados, centrados
principalmente em questões políticas, e no entendimento corrente do que era um
documento histórico.
Por exemplo, um dos temas preferidos de Febvre é o que se pode chamar de
geografia histórica. O interesse por esse tema veio de um antigo professor,
chamado Vidal de la Blache. O nome de la Blache servirá de inspiração para
membros de gerações posteriores da Escola dos Annales, notadamente Fernand
Braudel.
Para Febvre, há uma variedade de possíveis respostas aos desafios
oferecidos por um meio ambiente qualquer. Para ele, não havia uma relação
condicional de determinado ambiente e o tipo de modo de vida que deveria se
acomodar a esse ambiente. Assim, Febvre se apoiava na geografia para explicar
alguma condição histórica, mas isso não quer dizer que ele fosse um
determinista geográfico. Muito provavelmente, o debate entre determinismo e
liberdade humana não seja resolvido empiricamente. Na verdade, Febvre não está
muito interessado nessa discussão de cunho mais filosófico. Mas ele oferece
alguns exemplos pitorescos de como o ser humano é capaz de se posicionar de
diferentes maneiras frente a um mesmo dado geográfico. Podemos citar um dos
exemplos favoritos do historiador francês: um mesmo rio pode ser tratado como
sendo uma barreira numa determinada sociedade, mas também pode ser tratado como
um meio de transporte em outra sociedade. Assim, não é um rio que determina uma
sociedade, mas é a coletividade, com sua maneira de viver, seu comportamento e
suas atitudes que moldaram o modo de vida em determinado rio.
O outro fundador da Escola dos Annales, Marc Bloch, foi um importante
medievalista. Bloch também se interessou pela geografia histórica. Aliado a
esse interesse, Bloch lança o que se poderia chamar de história-problema. Para
ele, o estudo geográfico depende fortemente da própria noção de região que se
tem na cabeça, essa noção depende do problema que se quer resolver.
Ou seja, não se pode esperar que um jurista
interessado no feudalismo, um economista interessado na evolução de preços nos
tempos feudais e o historiador interessado nas noções de feudalismo na
Europa Ocidental tenham todos as mesmas noções de fronteiras geográficas. Por
exemplo, o jurista pode afirmar que a lei romana foi amplamente praticada nas
sociedades latinas, mas não saxônicas. Já o economista pode desconsiderar essas
fronteiras para estudar o fenômeno inflacionário. O historiador, por sua vez,
pode concluir que o feudalismo da Europa Ocidental é muitíssimo semelhante ao
do sul e leste da Inglaterra, ou seja, há uma espécie de continuidade
geográfica nessas regiões quando comparamos certos aspectos do feudalismo.
Marc
Bloch morreu prematuramente durante a Segunda Grande Guerra. Febvre faleceu em
1956, mas deixou um discípulo que seria o nome mais importante da segunda
geração dos Annales, Fernand Braudel (1902 - 1985). Semelhante aos fundadores
dos Annales, Braudel nutre uma imensa preocupação com a história geográfica; sua
mais famosa obra, na verdade uma tese terminada em 1949, "O Mediterrâneo e
o mundo mediterrâneo na época de Philippe II", é rico na descrição de
montanhas, campos, vales e das diversas paisagens que compõem o principal mar
europeu. Todavia, uma de suas grandes contribuições é com relação à abordagem
do tempo.
Para entender a concepção braudeliana de tempo, é importante ter em
mente que essa concepção é uma espécie de resposta às críticas que o etnólogo
Lévi-Strauss fez à história nas décadas de 50 e 60 do século XX.
Para Lévi-Strauss, o historiador está preso a um plano empírico de
observação, o que, consequentemente, o condena a não ser capaz de criar
modelos. Assim, o historiador não é capaz de ter acesso às estruturas profundas
da sociedade que, obviamente, são as que mais importam. Importante ressaltar
que o etnólogo francês considera a etnologia e a história disciplinas próximas.
A distinção entre estas duas disciplinas situa-se entre os limites de uma
ciência empírica e os limites de uma ciência conceitual que, obviamente, é a etnologia.
Ao que parece, as afirmações de Lévi-Strauss incomodaram profundamente
Braudel.
Desse
incômodo, nasceu uma estratégia dividida em duas partes: a história seria uma
espécie de ciência aglutinadora das ciências humanas e a história respeitaria
profundamente o programa dessas ciências humanas. Assim, Braudel é partidário
do livre intercâmbio das ideias e das pessoas entre as diversas ciências
humanas, ou seja, ele defende a multidisciplinariedade e a
interdisciplinariedade. Porém, o mais surpreendente é que ele vai se apropriar
das conquistas da antropologia estrutural, tentando relacioná-las à matéria
prima do historiador: o tempo.
Essa
aproximação, por si só surpreendente, permitirá Braudel fundamentar de
maneira mais clara um conceito que estava pairando nos Annales desde Marc
Bloch, o conceito de tempo de longa duração. Desse modo, ele propõe reorganizar
o conjunto das ciências sociais ao redor de um programa comum, que tenha como
referente essencial a longa duração, a qual permitiria uma linguagem comum
entre historiadores, sociólogos, antropólogos, geógrafos e outros cientistas
sociais.
Na obra "O Mediterrâneo", é apresentada a arquitetura do que
seria a longa duração. Nesta obra, o tempo articula-se ao redor de três temporalidades:
os acontecimentos, o tempo conjuntural/rotineiro e, por fim, a longa duração.
Nessa abordagem, a esperança é perceber estágios diferentes da passagem do
tempo e certas defasagens entre as temporalidades. Importante notar que essas
três temporalidades não são independentes umas das outras, elas são solidárias.
Há,
portanto, uma temporalidade global que reúne tudo num todo. Com esse movimento,
Braudel consegue duas coisas importantes: primeiro, ele consegue mostrar os
problemas acarretados pela noção de tempo múltipla e a-histórica adotada, por
exemplo, por sociólogos e antropólogos, entre esses problemas está o apriorismo
teórico; segundo, ele consegue colocar a história novamente no centro das
atenções, como disciplina aglutinadora de todas as outras por conta da noção de
longa duração.
Como Lévi-Strauss, Braudel destrói a concepção linear de tempo que
avança para um aperfeiçoamento contínuo, substituindo-o por um tempo quase
estacionário, em que o passado, o presente e o futuro não se diferem e se
reproduzem sem descontinuidade. Seria como se somente a ordem da repetição,
observada na longa duração, fosse possível. Assim, somente com a história
estacionária seria possível dar conteúdo aos meros fatos que atingem a
superfícialidade histórica. Por conta disso, diferente de Febvre, Braudel pode
ser considerado um determinista histórico, traço esse que será apontado por
alguns membros da terceira geração dos Annales.
O surgimento de uma terceira geração tornou-se mais óbvio nos anos que
se seguiram a 1968. Cronologicamente e esquematicamente, pode-se afirmar que a
terceira geração se estruturou mais ou menos assim:
1969 - os jovens André Burguière e Jacques Revel se envolveram na
administração dos Annales.
1972 - aposentadoria de Braudel; nesse mesmo ano, Jacques Le Goff toma a
presidência da VI Seção da "École
Pratique des Hautes Études".
1975 - Jacques le Goff torna-se o presidente da reorganizada "École des Hautes Études en Sciences Sociales”.
1977 - Jacques le Goff é substituído por François Furet na "École des Hautes Études".
Diferente das duas primeiras gerações em que há três nomes dominantes, a
terceira geração é marcada pela fragmentação, ou seja, parece claro que não há
um núcleo dominante. Prevalece assim o policentrismo.
Uma das marcas da terceira geração é o retorno à história das
mentalidades inspirada em Lucien Febvre. Em parte, esse retorno se deve a uma
reação a certo negligenciamento de Braudel com relação à história das
mentalidades e com relação à história cultural de forma geral. Certamente o
personagem que representa melhor essa reação é o historiador “domingueiro”
Philippe Ariès.
O
francês Philippe Ariès (1914-1984) rejeitou quase que absolutamente a
perspectiva quantitativa do fazer histórico. Seus interesses estavam voltados
para as relações entre natureza e cultura, mais especificamente para as formas
que a cultura percebe e classifica os fenômenos naturais, tais como a infância
e a morte. Uma das conclusões polêmicas de Ariès é a de que a ideia de infância
ou, mais exatamente, que o sentimento de infância não existia na Idade Média.
Assim, o grupo etário que atualmente chamamos de "crianças" era
visto, mais ou menos, como "pequenos animais" até a idade de sete anos e quase como uma
miniatura dos adultos daí em diante.
Segundo Ariès, a infância foi descoberta na França, por volta do século
XVII. Para sustentar essa tese, o historiador francês sustenta que só por volta
do século XVII é que se começou a confeccionar roupas para crianças. Também,
cartas e diários documentam o interesse crescente dos adultos com relação ao
comportamento dos pequenos. Por fim, há a pesquisa em registros iconográficos;
Ariès percebeu, pelo crescente número de quadros de crianças, que a consciência
da infância como base para o desenvolvimento humano começa na modernidade, e
não antes disso.
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