segunda-feira, 4 de março de 2019

A ESCOLA DOS ANNALES - UMA BREVÍSSIMA HISTÓRIA ATÉ A TERCEIRA GERAÇÃO


A ESCOLA DOS ANNALES

Lucien Febvre
Lucien Febvre e Marc Bloch foram os líderes do que pode ser denominado Revolução Francesa da Historiografia. Essa revolução – ou evolução - se deu por meio da revista inicialmente intitulada "Annales de d'histoire économique et sociale", criada em 1928/1929, tendo como modelo os "Annales de Géographie" de Vidal de la Blache. Notadamente, os Annales desde a sua criação passaram por algumas gerações. Peter Burke, na obra "a Escola dos Annales 1929-1989", consegue descrever e sistematizar três gerações, até o ano de 1989. Apesar de ser possível apontar uma quarta geração pós 1989, tentaremos descrever e, na medida do possível, analisar as três gerações apontadas por Burke. Também, para melhor entender a formação dos Annales, se faz necessário entender os seus antecedentes históricos, tendo em vista a longa duração.
Marc Bloch
acervo de família
Desde o início da história, com Heródoto e Tucídides, a história tem sido escrita de várias maneiras. Todavia, a forma predominante de se fazer história, pelo menos até o início do século XX, foi o que poderíamos chamar de história política. Esse tipo de história era baseada nos grandes eventos e nos feitos de grandes homens, principalmente chefes militares, reis e mesmo figuras consideradas heróicas. 
No Iluminismo, temas sociais começaram a ganhar força e importância. Autores como Voltaire se preocupavam com o que poderíamos chamar de história da sociedade. 
Outro exemplo de descontentamento pode ser encontrado na obra "Declínio e queda do Império Romano" de Edward Gibbon, publicado em 1776.
Interessante notar que esse movimento de descontentamento sofreu um inesperado golpe, um golpe, poderíamos afirmar, não intencional. O sucesso da revolução científica na modernidade, liderada por nomes como Copérnico, Galileu Galilei e Isaac Newton, inspirou todas as áreas do conhecimento, influenciando inclusive a área de humanidades. O positivismo e a Escola Metódica de Ranke são exemplos dessa influência. O positivismo, principalmente, adotou o método científico como padrão de conhecimento. É notável, por exemplo, a influência do positivismo no nascimento da sociologia. O cientificismo dos positivistas inibiu consideravelmente a utilização da interpretação nos processos históricos, inibiu também as análises culturais. 
No século XIX, o nome de Ranke representou um grande reforço à história política. Importante ressaltar que os interesses de Ranke não se limitavam à história política, ele escreveu sobre a Reforma, a Contrarreforma e não rejeitou a história social, a história da arte ou da ciência. Todavia, Ranke passou a ideia de que a verdadeira história era a história científica, a qual é baseada na pesquisa exaustiva de documentos oficiais. Esse modo de enxergar a história fez com que os historiadores sócio-culturais parecessem meros diletantes que estavam no caminho errado. 
Certamente, as críticas voltadas para o positivismo rankeano são melhor direcionadas para os discípulos de Ranke. Para eles, a verdadeira história ou história científica tinha que ser baseada em dois elementos: numa metodologia centrada na pesquisa, busca e análise de documentos oficiais e, também, na pesquisa dos grandes eventos políticos, centrados, principalmente, nos grandes líderes. Pode-se afirmar que o radicalismo dos positivistas e dos rankeanos teve como reação o radicalismo do grupo dos Annales, descontentes com a história política centrada em fatos descarnados das dinâmicas sociais mais pulsantes e deixadas de lado pelos historiadores profissionais.
O movimento dos Annales, em sua primeira geração, teve dois líderes destacados: Lucien Febvre e Marc Bloch. Os dois historiadores franceses estavam profundamente descontentes com o positivismo histórico. Esse descontentamento se baseava nos temas históricos tradicionalmente abordados, centrados principalmente em questões políticas, e no entendimento corrente do que era um documento histórico. 
Por exemplo, um dos temas preferidos de Febvre é o que se pode chamar de geografia histórica. O interesse por esse tema veio de um antigo professor, chamado Vidal de la Blache. O nome de la Blache servirá de inspiração para membros de gerações posteriores da Escola dos Annales, notadamente Fernand Braudel. 
Para Febvre, há uma variedade de possíveis respostas aos desafios oferecidos por um meio ambiente qualquer. Para ele, não havia uma relação condicional de determinado ambiente e o tipo de modo de vida que deveria se acomodar a esse ambiente. Assim, Febvre se apoiava na geografia para explicar alguma condição histórica, mas isso não quer dizer que ele fosse um determinista geográfico. Muito provavelmente, o debate entre determinismo e liberdade humana não seja resolvido empiricamente. Na verdade, Febvre não está muito interessado nessa discussão de cunho mais filosófico. Mas ele oferece alguns exemplos pitorescos de como o ser humano é capaz de se posicionar de diferentes maneiras frente a um mesmo dado geográfico. Podemos citar um dos exemplos favoritos do historiador francês: um mesmo rio pode ser tratado como sendo uma barreira numa determinada sociedade, mas também pode ser tratado como um meio de transporte em outra sociedade. Assim, não é um rio que determina uma sociedade, mas é a coletividade, com sua maneira de viver, seu comportamento e suas atitudes que moldaram o modo de vida em determinado rio.
O outro fundador da Escola dos Annales, Marc Bloch, foi um importante medievalista. Bloch também se interessou pela geografia histórica. Aliado a esse interesse, Bloch lança o que se poderia chamar de história-problema. Para ele, o estudo geográfico depende fortemente da própria noção de região que se tem na cabeça, essa noção depende do problema que se quer resolver.
Ou seja, não se pode esperar que um jurista interessado no feudalismo, um economista interessado na evolução de preços nos tempos feudais e o historiador interessado nas noções de feudalismo  na Europa Ocidental tenham todos as mesmas noções de fronteiras geográficas. Por exemplo, o jurista pode afirmar que a lei romana foi amplamente praticada nas sociedades latinas, mas não saxônicas. Já o economista pode desconsiderar essas fronteiras para estudar o fenômeno inflacionário. O historiador, por sua vez, pode concluir que o feudalismo da Europa Ocidental é muitíssimo semelhante ao do sul e leste da Inglaterra, ou seja, há uma espécie de continuidade geográfica nessas regiões quando comparamos certos aspectos do feudalismo.
Marc Bloch morreu prematuramente durante a Segunda Grande Guerra. Febvre faleceu em 1956, mas deixou um discípulo que seria o nome mais importante da segunda geração dos Annales, Fernand Braudel (1902 - 1985). Semelhante aos fundadores dos Annales, Braudel nutre uma imensa preocupação com a história geográfica; sua mais famosa obra, na verdade uma tese terminada em 1949, "O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Philippe II", é rico na descrição de montanhas, campos, vales e das diversas paisagens que compõem o principal mar europeu. Todavia, uma de suas grandes contribuições é com relação à abordagem do tempo. 
Para entender a concepção braudeliana de tempo, é importante ter em mente que essa concepção é uma espécie de resposta às críticas que o etnólogo Lévi-Strauss fez à história nas décadas de 50 e 60 do século XX.
Para Lévi-Strauss, o historiador está preso a um plano empírico de observação, o que, consequentemente, o condena a não ser capaz de criar modelos. Assim, o historiador não é capaz de ter acesso às estruturas profundas da sociedade que, obviamente, são as que mais importam. Importante ressaltar que o etnólogo francês considera a etnologia e a história disciplinas próximas. A distinção entre estas duas disciplinas situa-se entre os limites de uma ciência empírica e os limites de uma ciência conceitual que, obviamente, é a etnologia. 
Ao que parece, as afirmações de Lévi-Strauss incomodaram profundamente Braudel. 
Desse incômodo, nasceu uma estratégia dividida em duas partes: a história seria uma espécie de ciência aglutinadora das ciências humanas e a história respeitaria profundamente o programa dessas ciências humanas. Assim, Braudel é partidário do livre intercâmbio das ideias e das pessoas entre as diversas ciências humanas, ou seja, ele defende a multidisciplinariedade e a interdisciplinariedade. Porém, o mais surpreendente é que ele vai se apropriar das conquistas da antropologia estrutural, tentando relacioná-las à matéria prima do historiador: o tempo.
Essa aproximação, por si só surpreendente, permitirá Braudel fundamentar de maneira mais clara um conceito que estava pairando nos Annales desde Marc Bloch, o conceito de tempo de longa duração. Desse modo, ele propõe reorganizar o conjunto das ciências sociais ao redor de um programa comum, que tenha como referente essencial a longa duração, a qual permitiria uma linguagem comum entre historiadores, sociólogos, antropólogos, geógrafos e outros cientistas sociais. 
Na obra "O Mediterrâneo", é apresentada a arquitetura do que seria a longa duração. Nesta obra, o tempo articula-se ao redor de três temporalidades: os acontecimentos, o tempo conjuntural/rotineiro e, por fim, a longa duração. Nessa abordagem, a esperança é perceber estágios diferentes da passagem do tempo e certas defasagens entre as temporalidades. Importante notar que essas três temporalidades não são independentes umas das outras, elas são solidárias.
Há, portanto, uma temporalidade global que reúne tudo num todo. Com esse movimento, Braudel consegue duas coisas importantes: primeiro, ele consegue mostrar os problemas acarretados pela noção de tempo múltipla e a-histórica adotada, por exemplo, por sociólogos e antropólogos, entre esses problemas está o apriorismo teórico; segundo, ele consegue colocar a história novamente no centro das atenções, como disciplina aglutinadora de todas as outras por conta da noção de longa duração.
Como Lévi-Strauss, Braudel destrói a concepção linear de tempo que avança para um aperfeiçoamento contínuo, substituindo-o por um tempo quase estacionário, em que o passado, o presente e o futuro não se diferem  e se reproduzem sem descontinuidade. Seria como se somente a ordem da repetição, observada na longa duração, fosse possível. Assim, somente com a história estacionária seria possível dar conteúdo aos meros fatos que atingem a superfícialidade histórica. Por conta disso, diferente de Febvre, Braudel pode ser considerado um determinista histórico, traço esse que será apontado por alguns membros da terceira geração dos Annales. 
O surgimento de uma terceira geração tornou-se mais óbvio nos anos que se seguiram a 1968. Cronologicamente e esquematicamente, pode-se afirmar que a terceira geração se estruturou mais ou menos assim:
1969 - os jovens André Burguière e Jacques Revel se envolveram na administração dos Annales.
1972 - aposentadoria de Braudel; nesse mesmo ano, Jacques Le Goff toma a presidência da VI Seção da "École Pratique des Hautes Études". 
1975 - Jacques le Goff torna-se o presidente da reorganizada "École des Hautes Études en Sciences Sociales”
1977 - Jacques le Goff é substituído por François Furet na "École des Hautes Études".
Diferente das duas primeiras gerações em que há três nomes dominantes, a terceira geração é marcada pela fragmentação, ou seja, parece claro que não há um núcleo dominante. Prevalece assim o policentrismo. 
Uma das marcas da terceira geração é o retorno à história das mentalidades inspirada em Lucien Febvre. Em parte, esse retorno se deve a uma reação a certo negligenciamento de Braudel com relação à história das mentalidades e com relação à história cultural de forma geral. Certamente o personagem que representa melhor essa reação é o historiador “domingueiro” Philippe Ariès. 
O francês Philippe Ariès (1914-1984) rejeitou quase que absolutamente a perspectiva quantitativa do fazer histórico. Seus interesses estavam voltados para as relações entre natureza e cultura, mais especificamente para as formas que a cultura percebe e classifica os fenômenos naturais, tais como a infância e a morte. Uma das conclusões polêmicas de Ariès é a de que a ideia de infância ou, mais exatamente, que o sentimento de infância não existia na Idade Média. Assim, o grupo etário que atualmente chamamos de "crianças" era visto, mais ou menos, como "pequenos animais" até a idade de sete anos e quase como uma miniatura dos adultos daí em diante.
Segundo Ariès, a infância foi descoberta na França, por volta do século XVII. Para sustentar essa tese, o historiador francês sustenta que só por volta do século XVII é que se começou a confeccionar roupas para crianças. Também, cartas e diários documentam o interesse crescente dos adultos com relação ao comportamento dos pequenos. Por fim, há a pesquisa em registros iconográficos; Ariès percebeu, pelo crescente número de quadros de crianças, que a consciência da infância como base para o desenvolvimento humano começa na modernidade, e não antes disso.






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