quinta-feira, 4 de abril de 2019

A GENEALOGIA DA MORAL EM NIETZSCHE - PARTE I


PARTE I




Nietzsche (1844 - 1900) possui uma obra intitulada "Genealogia da moral" (doravante “GM”), a qual por si própria fornece uma boa aproximação do que seja a moralidade para o filósofo alemão. 
Keith Ansell-Pearson, na coleção “Cambridge Texts in the History of Political Thought”, nos alerta que essa obra, escrita em 1887, é considerada por muitos comentadores como uma das obras mais sistemáticas de Nietzsche, seja no sentido da organização, seja no sentido de como o autor se aproximou das questões. O próprio Nietzsche, no Prólogo (parte 2) da "GM", admite que após uma parada ele escreveu essa obra retomando temas das obras anteriores, só que agora buscando uma maior precisão com relação a esses temas. Assim, ele espera que a "GM" seja uma obra mais madura, clara, forte e perfeita do que, por exemplo, a obra "Além do bem e do mal". 
Não obstante, Ansell-Pearson também nos informa que o próprio Nietzsche, numa carta para Peter Gast, considerava a "GM" como sendo uma espécie de "pequeno panfleto polêmico" que poderia ajudá-lo a vender mais cópias das obras anteriores. Essa avaliação do próprio Nietzsche nos leva a tentar compreender a obra “GM” à luz de outras obras. Como o nosso objetivo é tentar, sobretudo, extrair elementos de ética e política do pensamento nietzscheano, então escolhemos três outras obras que podem ajudar a aclarar certos conceitos. As obras escolhidas foram “A gaia ciência” de 1882, "Além do bem e do mal" de 1886 e "Ecce homo" de 1888; as duas últimas foram escolhidas por estarem mais próximas cronologicamente da obra “GM” e por comporem o período mais crítico e ácido do pensamento nietzscheano.
A “GM” pode ser considerada uma obra de maturidade, no sentido de que nessa obra se esclarece um pouco melhor alguns temas contidos em escritos anteriores, principalmente com relação à obra "Além do bem e do mal". Para início de conversa, a “GM” pode ser entendida como uma crítica virulenta a vários aspectos da modernidade, como a ciência moderna, a política moderna e a moralidade moderna. Para tanto, o texto se estrutura em torno da ideia de se tentar montar uma genealogia da moral, a qual explicaria por meio de instrumental histórico, filológico e psicológico como é que nasceu a moralidade e como ela foi se transformando até chegar na modernidade. 
O resultado dessa empreitada é uma desconcertante história sobre um passado moral voluntarista - a moral do senhor ou do nobre - que foi se transformando nas mãos da modernidade cristã e na moralidade tal como a conhecemos atualmente, referida como a moral de escravo ou de rebanho. Além de mostrar como surgiu a noção de bom e de mau com relação à moralidade dos nobres e como, pela transformação dessa noção pela moralidade de rebanho, surgiram os nossos preconceitos morais. 
Genealogia da Moral
             Capa da edição de 1887
A obra “GM” pretende ser antecipatória com relação aos eventuais desdobramentos da moralidade de rebanho. Para Nietzsche, o vir a ser humano terá que lidar com a morte de Deus e com o falecimento da cultura cristã. Ou seja, se faz necessário uma nova tresvaloração dos valores para preparar terreno para o homem redentor, ou o homem superior. Na visão de Marek Rautenberg, a percepção da tresvaloração dos valores está conectada à uma apreensão crítica da história da moral e a uma genealogia.
Numa carta direcionada ao colega Jacob Burckhardt, Nietzsche demonstra preocupação com o desenvolvimento e os desdobramentos da cultura europeia; para ele, a ideia de que essa cultura proporcionaria o melhoramento humano era algo extremamente duvidoso. Também, a “GM” é uma crítica ao entendimento da moralidade por meio da tradição filosófica e do conceito científico de vida; assim, percebem-se críticas à ética kantiana e ao darwinismo, as quais tentaremos apontar ao longo deste texto. 
O vitalismo nietzscheano possui fortes aspectos ligados à psicologia humana, manuseados hermenêuticamente, o que reforça o aspecto, diríamos, internalista contida na “GM”. Por fim, a naturalização dessa falsa moralidade, a moralidade moderna europeia, é estruturada uma linguagem moralista, retórica e maliciosamente falsa.
Na obra "Ecce Homo", o autor descreve a “GM” como sendo um trabalho construído por um psicólogo que pretende criar uma alternativa para o ascetismo vigente, por meio de uma transvaloração de todos os valores. A “GM” possui um Prólogo e três ensaios, traduzidos como dissertações por Paulo César de Souza. Essas dissertações são:

1) Primeira dissertação: "bom e mau", "bom e ruim";
2) Segunda dissertação: "culpa", "má consciência" e coisas afins e
3)  Terceira dissertação: “o que significam ideais ascéticos?”