terça-feira, 26 de agosto de 2014

CONHECIMENTO E COSMOLOGIA EM PLATÃO

CONHECIMENTO E COSMOLOGIA EM PLATÃO

I - INTRODUÇÃO

O pensamento ocidental foi fortemente marcado pela filosofia antiga, principalmente pelos escritos de Platão e Aristóteles.  As influências metafísicas, epistemológicas, éticas desses dois pensadores são enormes para o nosso mundo. Qualquer discussão mais séria ou mais aprofundada sobre ciência, religião, ética ou política passa quase que necessariamente pelos problemas filosóficos levantados por esses dois importantes filósofos da antiguidade.  Obviamente, muitos outros nomes da filosofia grega antiga ajudaram a moldar a concepção de mundo e de homem do mundo ocidental.  Todavia, Platão e Aristóteles exerceram uma espécie de fascínio principalmente entre os pensadores do mundo medieval e os da modernidade.  Prova disso são as influências que Platão e Aristóteles exerceram nos pensamentos de Santo Agostinho e de Santo Tomás de Aquino, respectivamente, e mesmo as influências sofridas pela epistemologia moderna, nitidamente via racionalismo e empirismo.
Reconhecido o tributo da Filosofia Antiga - focadas nas obras de Platão e Aristóteles - para o mundo medieval e para o mundo moderno, é preciso dar o segundo passo.  Esse passo consiste em se tentar estabelecer quais obras e, também, quais ideias influenciaram os pensadores medievais e modernos.  O terceiro passo, mais complicado, é tentar entender como essas ideias foram entendidas e apropriadas. 

II – TIMEU

Platão

Para começar, respeitando a cronologia, podemos tentar analisar o pensamento platônico do qual saíram, pelo menos, três obras que influenciaram fortemente a filosofia posterior.  Essas obras são: o livro VII da República (a alegoria da caverna), Timeu e Fédon.  Importante ressaltar que esses três diálogos fazem parte do conjunto do que poderíamos chamar de os últimos diálogos platônicos, o que, em certa medida, pode representar o pensamento maduro de Platão. [1]
Comumente, o diálogo Timeu é dividido em três partes ou três temas principais que apareceram durante todo o texto.  Os três temas são os seguintes:

1)      a construção do mundo por uma operação racional,

2)      àquilo que acontece por necessidade bruta da matéria a qual é anterior à ação do Demiurgo e

3)  a combinação humana de corpo e alma, além do aparecimento de outros seres que povoam o mundo, como as árvores e os outros animais. 

 Importante notar que há também um quarto tema o qual, em grande medida, estrutura a compreensão, digamos, física dos três temas acima citados.  Esse tema pode ser considerado o "atomismo platônico". Nesse atomismo, os elementos que compõem o universo atuam não só mecanicamente, eles possuem um telos ou uma finalidade. Esse tema é importante porque os átomos platônicos estruturam os quatro elementos e também causam o movimento. Platão escreveu o seguinte: 
Agora, devemos conceder todos esses elementos como de proporções tão reduzidas, que cada um deles, considerado isoladamente em cada gênero, escapa à nossa vista, por causa de sua pequenez; só percebemos as massas formadas por uma multidão deles. Ademais, com relação à proporção numérica, movimentos e outras propriedades, devemos admitir que a divindade os ajustou na medida certa, quando os organizou com perfeição até nas menores particularidades, dentro dos limites permitidos pela necessidade condescendente e acessível à persuasão. (56a - d)

 Parece evidente que o atomismo platônico se fundamenta na figura geométrica chamada triângulo, pois
[...] é claro para todo o mundo que o fogo a terra a água e o ar são corpos (sic). Ora, todos os corpos apresentam profundidades, sendo de necessidade forçosa que a profundidade esteja encerrada na natureza da superfície e que toda superfície retilínea seja composta de triângulos. (53c - d)

Aliás, Platão cita os quatro tipos de triângulo - escaleno, isósceles, equilátero e retângulo - para explicar, por exemplo, a formação dos quatro elementos - fogo, água, terra e ar - e também o movimento.  Pela passagem acima, pode-se inferir que o demiurgo "ajustou" e "organizou" a matéria dentro de certos limites, pois o artesão platônico não é capaz de interferir na necessidade bruta da matéria.  Também, é importante ressaltar que o demiurgo ajustou e organizou a matéria de acordo com um modelo imutável e eterno.  Assim, na cosmologia platônica, tanto o modelo quanto a matéria existem anteriormente à ação demiúrgica.

Os elementos e seus respectivos sólidos
na cosmologia platônica.




Em muitos aspectos, a cosmologia platônica segue a tradição dos três primeiros filósofos oriundos da Jônia - Tales, Anaximandro e Anaxímenes -, segue também o embate entre mobilistas e imobilistas iniciado, respectivamente, por Heráclito e Parmênides, além dos pensamentos de Empédocles, Anaxágoras e Demócrito, só para citar os mais famosos.   Nesse sentido, há também no Timeu a busca por um princípio (arché) que inicie todo um processo; no caso desse diálogo, o princípio ordenador do mundo se refere a uma espécie de artista, arquiteto ou artesão, o qual chamaremos de Demiurgo.  Ele ordenou a matéria tomando como base uma espécie de modelo pré-determinado.  Esse modelo é baseado numa realidade perfeita, imaterial, imutável e eterna, também chamada de Mundo das Ideias. 
 O mundo habitado pelos humanos é imperfeito porque possui substrato material, ou seja, a matéria traz elementos de desordem, de mudança, de necessidade bruta.  Desse modo, pode-se perceber duas concepções de universo que irão causar certas tensões ao longo do diálogo platônico.  Uma concepção diz respeito ao universo divino, perfeito, apreendido pela razão; a outra concepção diz respeito ao universo imperfeito, apreendido pela sensação.  A primeira concepção diz respeito ao que "sempre existiu e nunca teve princípio", ou seja, é eterno.  A segunda concepção diz respeito àquilo que a "todo instante nasce e perece, sem nunca ser verdadeiro".
 A pesquisa platônica coloca assim o estudo desses dois mundos: 
Em que consiste o que sempre existiu e nunca teve princípio?  O primeiro é apreendido pelo entendimento com a ajuda da razão, por ser sempre igual a si mesmo, enquanto o outro o é pela opinião, secundada pela sensação carecente de razão, porque a todo instante nasce e perece, sem nunca ser verdadeiramente.  E agora: tudo o que nasce ou devém procede necessariamente de uma causa, porque nada pode originar-se sem causa.  Quando o artista trabalha em sua obra, a vista dirigida para o que sempre se conserva igual a si mesmo, e lhe transmite a forma e a virtude desse modelo, é natural que seja belo tudo o que ele realiza.  Porém se ele se fixa no que devém e toma como modelo algo sujeito ao nascimento, nada belo poderá criar. (27d – 28b)

 Na passagem acima há claramente uma concepção estética do universo.  A beleza do modelo está associada às ideias de imutabilidade e de eternidade.  Assim, não é forçoso afirmar que o cosmo de Platão possui fortes semelhanças com a feitura ou confecção de uma obra artística, orientada pela concepção estético-racional do Demiurgo que, como visto, observa o modelo perfeito - o Mundo das Ideias - para executar a sua obra. 
Em outra passagem, o personagem Timeu afirmou o seguinte:
Outro ponto que precisamos deixar claro, é saber qual dos dois modelos tinha em vista o arquiteto quando o construiu: o imutável e sempre igual a si mesmo ou o que está sujeito ao nascimento? Ora, se este mundo é belo e for bom seu construtor, sem dúvida nenhuma este fixara a vista no modelo eterno; e se for o que nem se poderá mencionar, no modelo sujeito ao nascimento. Mas, para todos nós é mais do que claro que ele tinha em mira o paradigma eterno; entre as coisas nascidas não há o que seja mais belo do que o mundo, sendo seu autor a melhor das causas. Logo, se foi produzido dessa maneira, terá de ser apreendido pela razão e a inteligência e segundo o modelo sempre idêntico a si mesmo. Nessas condições, necessariamente o mundo terá de ser a imagem de alguma coisa. (28c – 29b)

Disso tudo, podemos esboçar a metafísica platônica em termos das causas que compõem o universo.  No diálogo Timeu, pode-se identificar duas causas que servem para a formação do Cosmo:

1)                         Uma das causas está relacionada ao que é o "divino", ou seja, àquilo que é sempre invariável.  Essa causa é apreendida pela razão ou pela inteligência. 

2)  A outra causa está relacionada ao acaso e à desordem, elementos esses que causam o movimento no universo, ou o devir. 

 Assim, quem busca a verdadeira realidade "deve necessariamente procurar primeiro as causas que pertencem à natureza inteligente, e somente em segundo lugar as que pertencem às coisas movidas por outras que, por sua vez, põem necessariamente outras mais em movimento" (46d – e).  Nessa passagem, pode-se inferir que o movimento não pertence à natureza do Cosmo, pois, entre outros, o Cosmo é divino e, portanto, invariável.  Tanto Platão quanto Aristóteles parecem localizar esse Cosmo divino para além da Lua.  O mundo sublunar - o nosso mundo - teria fortes elementos de acaso e de desordem, sendo, portanto, um desprezível objeto de estudos.  No Timeu, Platão faz uma crítica a quem tenta estudar o universo ou a realidade se apoiando no mundo sublunar, em que há o movimento. 

Tudo isso se inclui entre as causas secundárias de que Deus se serve para realizar, tanto quanto possível, a ideia do melhor. Mas a maioria dos homens não as considera secundárias, senão causas primárias de tudo, por terem elas a propriedade de esfriar e aquecer, condensar e dilatar, e demais efeitos do mesmo gênero.  Mas tais causas são incapazes de atuar com razão e inteligência. (46c – d)







Detalhe da pintura “Escola de Atenas” de Rafael, pintada entre 1509/1510 e localizada no Vaticano.
No detalhe há as figuras de Platão e Aristóteles. O primeiro apontando o dedo para o céu.


Como visto, a razão faz esse contato entre o humano e o universo divino.   Em uma passagem do Timeu, Platão deixa claro que a natureza da razão é fundamentalmente Matemática.  A passagem é a seguinte: 
A meu parecer, a vista é para nós a causa do maior benefício imaginável, porque nenhuma palavra da presente dissertação acerca do universo jamais poderia ter sido enunciada, se nunca tivéssemos contemplado os astros nem o sol nem o céu.  Realmente, foi a vista do dia e da noite, dos meses e das revoluções dos anos, dos equinócios e dos solstícios que nos levou a descobrir o número, deu-nos a noção do tempo e os meios de estudar a natureza do todo.  Dela é que derivamos a filosofia, o mais precioso bem que o gênero humano em algum tempo recebeu ou que venha a receber da munificência dos deuses. (47a – b)

Pode-se perceber que o conhecimento astronômico desempenha um papel central na epistemologia platônica. Melhor, o estudo da astronomia é o tipo de estudo adequado para se alcançar a verdadeira realidade do cosmo. Mas, como visto, o estudo astronômico deveria se direcionar para os corpos para além da Lua, onde vive o divino. Assim, é forçoso indagar: e o mundo que é de fato habitado pelas criaturas humanas? Que tipo de mundo é esse? A resposta platônica é um tanto complexa pois, entre outros, pressupõe uma separação radical entre o conhecimento sensível e o inteligível de uma maneira nem sempre clara. Resumidamente, o mundo sensível é como se fosse uma cópia imperfeita do mundo inteligível, ou Mundo das Ideias. As cópias seriam forjadas numa espécie de receptáculo, todavia a natureza desse receptáculo nunca muda pois ela

[...]recebe todos os corpos, (essa natureza) deve ser sempre designada como a mesma, pois jamais se despoja de seu próprio caráter; recebe todas as coisas, sem nunca assumir, de maneira alguma, o caráter do que entra nela. Por natureza, é matriz de todas as coisas; movimenta-se e diversifica-se pelo que entra nela, razão de parecer diferente, conforme as circunstâncias. Quanto às coisas que entram e saem, devem ser consideradas cópias da substância eterna, cunhadas sobre esse modelo, por maneira admirável e difícil de explicar. (50b – d)

Desse modo, nosso mundo foi cunhado ou produzido numa espécie de receptáculo que possui todas as formas ou figuras que existem, pois se o receptáculo
se parecesse com as coisas que entram nele, sempre que chegassem coisas de natureza oposta ou totalmente diferente, ele as representaria mal, porque seus próprios traços deformariam a imagem. Por isso mesmo, o que tiver de receber todas as espécies, não deve possuir caráter especial. (50e)

Resumidamente, pode-se afirmar que o nosso mundo é o produto de dois fatores: o Demiurgo forjou-o num substrato material, ou receptáculo, com vistas para um modelo que é o Mundo das Ideias.
A relação entre os sentidos e o Mundo das Ideias foi fonte de vários problemas na filosofia platônica. No diálogo Timeu, o foco principal é sobre a origem do mundo, do homem e das coisas que compõem, digamos, o habitat natural humano. Dessa maneira, os problemas oriundos da teoria das ideias são pouco encaminhados; apesar disso, Platão oferece interessantes e elucidativas explicações para a relação entre o mundo sensível e o mundo inteligível. No diálogo Fédon - assim como o Timeu, um diálogo de maturidade -, Platão parece rejeitar a ideia de que o conhecimento é uma espécie de cooperação entre os sentidos e a razão. Segundo Ross,[2] o diálogo Fédon marca a existência separada do Mundo das Ideias. Então, como é possível o conhecimento da verdadeira realidade e das regras que regem o universo? 
A sugestão platônica passa pela concepção de que o mundo sensível não é capaz de dar inteligibilidade às Idéias ou Formas porque não é capaz de conhecê-las. Assim, na teoria platônica há uma espécie de apriorismo, ou seja, um tipo de conhecimento que é anterior à experiência sensível. Esse conhecimento é baseado numa espécie de reminiscência, rememoração ou recordação, o qual atinge diretamente e, digamos, imediatamente, o Mundo das Ideias.  Importante ressaltar que essa anamnese é feita por meio da alma que é a parte invisível e divina do ser humano.  Assim, a doutrina da anamnese parece claramente fazer uma separação radical entre o Mundo das Ideias e o mundo sensível.  Nesse contexto, o conhecimento só é possível por verossemelhança, ou seja, tendo como modelo aquilo que "é" e que não poderia ser de outra forma, como fez o Demiurgo para montar o mundo. 
 Também no Fédon é possível identificar as características da alma e do corpo.  A alma teria as seguintes características: divinidade, imortalidade, inteligibilidade, uniformidade, ela seria indissolúvel e sempre igual a si mesma, ou seja, imutável; já o corpo teria as características facilmente alcançáveis pela percepção humana: mortalidade, multiformidade, ininteligibilidade, dissolutibilidade e perpétua mutabilidade. [3]
Uma das conclusões que se pode tirar da cosmologia platônica é de que o universo é estruturado teleologicamente.  O caráter teleológico impõe certa maneira de se pesquisar o mundo.  Assim, o verdadeiro conhecimento do mundo não se fundamenta no modo como os eventos naturais se apresentam aos nossos sentidos.  O telos platônico impõe tentar encontrar racionalmente o mundo ideal, levando-se em conta a necessidade bruta da matéria e o devir.[4] Esse tipo de pesquisa flerta fortemente com o pensamento apriorístico.  Prova disso é que as características da alma anteriormente elencadas - divinidade, imortalidade, inteligibilidade etc. - só podem ser alcançadas pelo raciocínio apriorístico, ou seja, a resposta para as características da alma não encontram suporte na confirmação empírica.  Obviamente, esse tipo de pesquisa costuma gerar atritos entre aquilo que é observado e aquilo que é alcançável somente com os olhos da razão. Comumente no Timeu, Platão consegue explicar os fenômenos sensivelmente percebidos se utilizando da explicação de tipo estético-divina ou de como o universo idealmente funciona; todavia, noutras vezes, há uma espécie de "curto-circuito" entre os dados empíricos e aquilo que foi aprioristicamente concebido como sendo o universo ideal. 



BIBLIOGRAFIA

PLATÃO. Timeu - Crítias - O Segundo Alcebíades - Hípias Menor . Tradução: Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2001.

ROSS, William David, Sir. Plato’s theory of ideas. Clarendon Press: Oxford, 1951.

Zeyl, Donald, "Plato's Timaeus", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2014 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = .




[1] Ross fornece a ordem dos diálogos platônicos na percepção de 5 autores, entre eles Ritter e Wilamowitz. Ver ROSS (1951, p. 2).
[2] ROSS (1951, pp. 24-25). Em grande medida, a tese da separação radical entre o mundo sensível e o mundo inteligível também pode ser percebida na alegoria da caverna.
[3] Essas características são apontadas por Ross. Ver ROSS (1951, p. 122)
[4] Zeyl nos fornece interessante explicação sobre a relação entre teleologia e pesquisa cosmológica em Platão. Ver:
Zeyl, Donald, "Plato's Timaeus", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2014 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = . Acessado em 26/08/2014. 

domingo, 2 de fevereiro de 2014

UTILITARISMO


UTILITARISMO

PRAZER, FELICIDADE E CONSEQUENCIALISMO


John Stuart Mill, um dos principais representantes do utilitarismo, enunciou assim a sua ética:
O credo que aceita a utilidade ou o princípio da maior felicidade como a fundação da moral sustenta que as ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o contrário da felicidade. [1]
O enunciado acima (MILL, 2000, p.187) ficou conhecido como o Princípio Fundamental do Utilitarismo (PFU). Desse princípio, podemos inferir que o utilitarista acredita que a felicidade é, tal como na Ética das Virtudes, o maior bem humano porque as pessoas guiam suas ações visando alcançá-la. Por conta disso, a ética utilitarista é chamada de teleológica, ou seja, é uma ética que visa a um objetivo, uma finalidade que é, justamente, a vida feliz.



                                                                                           John Stuart Mill


Comumente, se pensa que a felicidade seja algo prazeroso ou que está relacionada ao prazer. A busca pelo prazer é considerada uma atitude hedonista. Por conta dessa relação entre felicidade e prazer, a versão mais conhecida do utilitarismo é o “utilitarismo hedonista”, segundo o qual o prazer serve como uma espécie de padrão para saber se uma ação é correta ou não. Obviamente, utilizar somente o prazer como medida do certo e do errado parece insuficiente, pois há ações consideradas prazerosas que, primeiro, possuem nenhum conteúdo moral e, segundo, são consideradas imorais. No primeiro caso, podemos citar o prazer sexual ou os prazeres etílicos que aparentemente possuem nenhum conteúdo moral. No segundo caso, podemos citar o exemplo do torturador que sente imenso prazer em machucar pessoas.
Por causa desses inconvenientes advindos do hedonismo, Mill reformulou alguns aspectos do utilitarismo visando, entre outros, minimizar o caráter meramente hedonista associado ao utilitarismo. Para tanto, o filósofo inglês introduziu alguns elementos que tornaram o utilitarismo 
menos desprotegido com relação às críticas anti-hedonistas. Destacaremos dois elementos apenas [2]:

Primeiro: a importância do cultivo do caráter virtuoso para se atingir a felicidade. Nesse sentido, podemos perceber certa relação entre o utilitarismo e a ética das virtudes.

Segundo: a qualificação dos prazeres, entre prazeres sensíveis, ou corporais, e prazeres intelectuais. Mill defende que a verdadeira felicidade, ou a felicidade de maior nível, está relacionada aos prazeres intelectuais. Por conta disso, o autor da obra “Utilitarismo” (1861) afirmou (MILL, 2000, p. 191):


"É melhor ser uma criatura humana insatisfeita do que um porco satisfeito; é melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito. E se o tolo ou o porco têm opinião diversa, é porque conhecem apenas um lado da questão: o seu. A outra parte, em compensação, conhece os dois lados." [3]


Pelo PFU também podemos entender que o agente moral presta atenção para as consequências de suas ações, pois “ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o contrário da felicidade”. Por isso, o utilitarismo é considerado uma ética consequencialista, ou seja, a ação correta leva em conta o resultado ou as consequências de uma ação. Assim, o consequencialismo é contrário à ética deontológica de cunho kantiano, pois, para Kant, a ação correta não leva em conta as consequências da ação, mas sim, predominantemente, a intenção do agente que age por dever seguindo o Imperativo Categórico.
Atualmente, o consequencialismo possui forte apelo por dois motivos: é simples para qualquer um entender e aceitar que as ações praticadas possuem consequências e essa percepção é, inclusive, um importante elemento de inserção social. Também, quando pensamos em responsabilidade moral, essa comumente se encontra associada à capacidade do agente perceber as eventuais consequências de sua ação. Por isso dirigir embriagado é algo condenável juridicamente e mesmo moralmente, porque se considera que o motorista bêbado é capaz de perceber as eventuais consequências desastrosas do seu ato, sendo, por isso, um agente responsabilizável ou, em termos mais jurídicos, imputável.
Podemos, agora, entender a relação estreita que o PFU estabelece entre o hedonismo e o consequencialismo. Essa relação se dá pela maximização da felicidade, segundo a qual a atitude correta deve ter como consequência a maior felicidade geral possível. Nesse sentido, uma ação é 
considerada boa ou má na medida em que ela aumenta ou diminui a felicidade geral. Num primeiro momento, parece óbvio que uma ação qualquer causadora de bem estar para dez pessoas é melhor do que uma outra ação semelhante que causou o bem estar para apenas uma pessoa.
Todavia, o princípio da maximização da felicidade também possui sérios problemas que podem ser percebidos por meio de experimentos de pensamento. Imagine que um louco homicida deseja dominar o mundo e para alcançar esse objetivo ele promove diversos atentados. Se sabe que um desses atentados tem o poder de matar milhões de seres humanos. O louco faz o seguinte acordo: ele promete não soltar a bomba se dez crianças quaisquer forem sacrificadas com requintes de crueldade [4]. Pelo princípio da maximização, o cálculo utilitarista apontaria para o sacrifício das dez crianças; todavia, isso parece ferir profundamente as nossas mais profundas convicções morais. Alguém pode argumentar que esse experimento de pensamento é por demais ficcional e dramático. Não obstante, parece fácil perceber que a maximização da felicidade pode acarretar em algo considerado imoral.
Até agora, ressaltamos três características gerais do utilitarismo: teleologia, hedonismo e consequencialismo. Há mais duas outras características que ressaltaremos brevemente: a universalização da ética utilitarista e a ideia de que as pessoas são iguais.

O caráter universal do utilitarismo possui dois aspectos: o primeiro que o ser humano é guiado por “dois senhores”, a dor e o prazer. Ou seja, TODOS os seres humanos tendem a buscar o prazer e evitar a dor. O outro aspecto da universalização está relacionado com a maximização do prazer; nesse, a ética utilitarista defende que a ação correta deve proporcionar a felicidade para um maior número de pessoas. Mas o que significa proporcionar a felicidade para um maior número de pessoas?
Uma leitura possível disso é que a ética utilitarista defende que devemos buscar, como um objetivo norteador, a felicidade de todas as pessoas do mundo; ou seja, a expressão “o maior número de pessoas” toca na universalidade desse número de pessoas. Obviamente, esse tipo de universalização exige certos poderes do agente que, no mínimo, são controversos: a sapiência do agente com relação às consequências futuras de seu ato, que normalmente não estão sob o seu controle, e uma espécie de abnegação da própria vida em prol da felicidade alheia.
Exemplificando, no primeiro caso parece óbvio que nossos poderes cognitivos não conseguem estruturar devidamente uma epistemologia adequada para saber as eventuais consequências do aqui e agora. Por conta da diversidade das concepções de bem, o ato bom de alguém pode, por exemplo, salvar a vida de um assassino serial (serial killer), o que será bom para o assassino, para sua família e para alguns amigos desse assassino. Todavia, o salvamento da vida desse assassino implicará na morte de dezenas de pessoas e a tristeza de outras tantas.
No segundo caso, com relação à abnegação da própria vida, parece necessário pensar que a busca pela maior felicidade implica que alguém se desfaça de bens próprios em prol dos mais necessitados. Desse modo, a universalização utilitarista parece demandar que alguém que possua alguns bens, como uma casa, um carro e algum dinheiro, abra mão de tudo isso para auxiliar quem se encontra em condições precárias. No limite, isso implicaria numa vida devotada ao bem dos outros.
A igualdade utilitarista está intimamente relacionada com a ideia do respeito igual para os seres sensientes. O que são seres sensientes? São seres capazes de sofrer prazeres e dores físicas ou psicológicas. Nesse sentido, a ética utilitarista se estende para além dos seres humanos, se aplica também para os animais não humanos. O princípio da igualdade defendido pelo utilitarista segue a seguinte lógica: todos os seres sensientes, notadamente os que possuem um sistema nervoso central, são capazes de sentir dor. Por conta disso, todos os seres sensientes são iguais com relação à sensação da dor e, por conseguinte, com relação à busca pelo prazer. Assim, a natureza dessas sensações possui uma base física comum a todos os seres sensientes, exigindo considerações éticas de cunho igualitário.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


[1] MILL, John Stuart. A liberdade / Utilitarismo. Tradução: Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Coleção Clássicos: Filosofia).
[2] Para uma análise mais apurada da concepção de Mill sobre o utilitarismo, ver:
BORGES, Maria de Lourdes et al. Ética. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
[3] MILL, John Stuart. A liberdade / Utilitarismo. Tradução: Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Coleção Clássicos: Filosofia).
[4] Experimentos de pensamento não precisam fornecer todos os dados da situação proposta. O mais importante, é que o leitor tenha uma atitude a mais benevolente possível para aceitar o funcionamento do experimento.
No caso proposto, para que o experimento funcione tem que se aceitar que, por exemplo, não há um “herói” que salvará o mundo, que o louco homicida é realmente mau ou que o louco homicida, apesar de ser louco, vai cumprir o que prometeu.