quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A PRIMEIRA LÍNGUA E A PRIMEIRA RELIGIÃO



A PRIMEIRA LÍNGUA E A PRIMEIRA RELIGIÃO



Roque de Barros Laraia[1] nos informa que o antropólogo ALFRED KROEBER (1876 – 1960), em um artigo intitulado "O superorgânico",[2] refere-se a dois experimentos que supostamente foram feitos no passado. Qualquer um pode duvidar da veracidade desses acontecimentos; até mesmo Kroeber parecia cético com relação à autenticidade desses. Mas o mais relevante é perceber que esses experimentos servem para mostrar algo da busca humana pela origem das coisas, mesmo que essa busca pareça absurda ou mesmo cruel.



Kroeber



Importante salientar que esses dois experimentos estão separados por cerca de 20 séculos, ou seja, por um longuíssimo período de tempo. O primeiro experimento foi relatado, segundo Kroeber, por Heródoto (484 a.C. - 425 a.C.)[3] há cerca de 500 anos antes da era cristã. A segunda experiência está relacionada ao imperador mongol conhecido como Akbar, o Grande (1542 - 1605).



Heródoto

Kroeber narrou assim esses experimentos: [4]


Heródoto conta-nos que um rei egípcio, desejando verificar qual a língua-mater da humanidade, ordenou que algumas crianças fossem isoladas da sua espécie, tendo somente cabras como companheiros e para o seu sustento. Quando as crianças já crescidas foram de novo visitadas, gritaram a palavra bekos, ou, mais provavelmente bek, suprimindo o final, que o grego padronizador e sensível não podia tolerar que se omitisse. O rei mandou então emissários a todos os países afim de saber em que terra tinha esse vocábulo alguma significação. Ele verificou que no idioma frígio isso significava pão, e, supondo que as crianças estivessem reclamando alimentos, concluiu que usavam o frígio para falar a sua linguagem humana "natural", e que essa língua devia ser, portanto, a língua original da humanidade. A crença do rei numa língua humana inerente e congênita, que só os cegos acidentes temporais tinham decomposto numa multidão de idiomas, pode parecer simples; mas, ingênua como é, a inquirição revelaria que multidões de gente civilizada ainda a ela aderem.
Contudo, não é essa a nossa moral da história. Ela está no fato de que a única palavra, bek, atribuída às crianças, constituía apenas, se a história tem qualquer autenticidade, um reflexo ou imitação — como conjeturam há muito os comentadores de Heródoto — do grito das cabras, que foram as únicas companheiras e instrutoras das crianças. Em suma, se for permitido deduzir qualquer inferência de tão apócrifa anedota, o que ela prova é que não há nenhuma língua humana natural e, portanto, nenhuma língua humana orgânica.
Milhares de anos depois, outro soberano, o imperador mongol Akbar, repetiu a experiência com o propósito de averiguar qual a religião natural da humanidade. O seu bando de crianças foi encerrado numa casa. Quando decorrido o tempo necessário, ao se abrirem as portas na presença do imperador expectante e esclarecido, foi grande o seu desapontamento: as crianças saíram tão silenciosas como se fossem surdas-mudas. Contudo, a fé custa a morrer; e podemos suspeitar que será preciso uma terceira experiência, em condições modernas escolhidas e controladas, para satisfazer alguns cientistas naturais e convencê-los de que a linguagem, para o indivíduo humano como para a raça humana, é uma coisa inteiramente adquirida e não hereditária, completamente externa e não interna — um produto social e não um crescimento orgânico.  


Embora esses experimentos tenham como objetos a linguagem e a religião, podemos estender a busca para a cultura original da humanidade; ou melhor, podemos fazer a seguinte pergunta:
Qual cultura corresponde à verdadeira natureza primordial humana?
Essa pergunta pode parecer tola, sem sentido e até mesmo bizarra. Todavia, atualmente muitas pessoas, agrupamentos sociais e grupos políticos reivindicam, sem muito pudor, determinados modos de vida como sendo os mais verdadeiros, pois supostamente pertenceriam à verdadeira natureza humana. Frequentemente, muitos grupos religiosos cometem e cometeram desumanidades com relação a outros grupos com a justificativa de que o outro grupo não segue a “verdadeira” religião. Atualmente, isso acontece com bastante frequência no Oriente Médio e mesmo no Brasil, considerado um país tolerante com relação às crenças religiosas. O exemplo mais dramático de perseguição cultural no século XX foi o que aconteceu na Alemanha nazista. Durante a Segunda Grande Guerra Mundial, milhares de judeus foram perseguidos e mortos por não seguirem o conjunto de crenças culturais impostas pelos líderes do nazismo.
Desse modo, Kroeber e outros estudiosos da cultura não acreditam ser possível encontrar a natureza humana primordial; por implicação, não é possível encontrar nem a linguagem original, nem a religião original e nem mesmo a cultura original.  

[...] isso sugere não existir o que chamamos de natureza humana independente da cultura. Os homens sem cultura não seriam os selvagens inteligentes de Lord of the Flies,[5] de Golding, atirados à sabedoria cruel dos seus instintos animais; nem seriam eles os bons selvagens do primitivismo iluminista, ou até mesmo, como a antropologia insinua, os macacos intrinsecamente talentosos que, por algum motivo, deixaram de se encontrar. Eles seriam monstruosidades incontroláveis, com muito poucos instintos úteis, menos sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto: verdadeiros casos psiquiátricos. Como nosso sistema nervoso central — e principalmente a maldição e glória que o coroam, o neocórtex — cresceu, em sua maior parte, em interação com a cultura, ele é incapaz de dirigir nosso comportamento ou organizar nossa experiência sem a orientação fornecida por sistemas de símbolos significantes.[6]



Isso não quer dizer que a cultura deva ser desconsiderada. A força dos traços culturais se mostra principalmente em situações de convívio social. Pode-se afirmar que a cultura estrutura a sociedade e fornece elementos para a política os quais orientarão formalmente toda uma nação ou povo.
O turista percebe bem a força da cultura; ele sabe que certos costumes praticados no Brasil não seriam bem recebidos numa cultura islâmica ou no Japão, por exemplo. Conhecer a cultura local pode ser inclusive uma questão de vida ou morte. Também, costuma-se dizer que cada empresa ou corporação possui uma cultura própria. É praticamente um dever do empregado conhecer a cultura empresarial da onde trabalha, pois esse conhecimento é uma espécie de “regras da casa” a serem seguidas caso se deseje obter sucesso no mundo corporativo.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
KROEBER, Alfred. The superorganic. American Anthropologist, v. 19, nº 2, 1917.




[1] Para a feitura deste texto, segui basicamente a obra de Roque de Barros Laraia intitulada “Cultura: um conceito antropológico” de 2005. O título do texto é “Uma experiência absurda”.
[2] KROEBER (1949).
[3] Heródoto nasceu na Grécia e é considerado o pai da História.
[4] Sigo inteiramente a tradução de Roque Laraia (2005, pp. 102 - 104).
[5] Essa obra foi traduzida para a nossa língua como “O senhor das moscas”. Há algumas versões cinematográficas dessa obra facilmente disponíveis. Essa nota é minha!
[6] LARAIA (2005, pp. 102 – 104). 

sexta-feira, 29 de maio de 2015

COMO ESCOLHER E LIDAR COM PARCEIROS

COMO ESCOLHER E LIDAR COM PARCEIROS
Os quatro princípios básicos e os cinco passos segundo Peter Drucker

APRESENTAÇÃO
Em 1985, PETER DRUCKER (1909-2005), consultor e teórico da gestão de negócios, escreveu um texto intitulado Selecionando pessoas: as regras básicas.[1] O texto é relativamente simples e é curto, mas serve perfeitamente para reflexões não só na área de gestão de pessoas, como também levanta questões interessantes sobre psicologia moral, ética, teoria da ação, entre outros. Indubitavelmente, esse texto serve para todo aquele que pretende um dia gerenciar pessoas. Mas para além da administração, as palavras de Drucker servem para todos nós que precisamos tomar decisões importantes com relação às pessoas no dia-a-dia.
Assim, o objetivo deste artigo é mostrar, em linhas gerais, a metodologia e a filosofia embutidas na teoria de Peter Drucker no momento de selecionar parceiros de negócio, seja para cargos considerados de alto nível, seja também para postos considerados mais simples ou que demandem menos responsabilidade. Também, é importante ressaltar que as palavras de Drucker serviram como inspiração para o aprofundamento de certas questões mais filosóficas.

O GERENCIAMENTO DE PESSOAS

Na visão de Drucker, os "executivos gastam mais tempo gerenciando pessoas e tomando decisões sobre indivíduos do que em qualquer outra atividade".[2]



                                                            Peter Drucker

                                                                                                                                                           

Todavia, mesmo os grandes executivos costumam tomar decisões erradas ou sofríveis acerca da gestão de pessoas. Pode-se afirmar que se um gerente acertou em pelo menos 50% na contratação de pessoas e na acertada alocação dessas, esse gerente pode ser considerado um administrador de sucesso. Se essa constatação está minimamente correta, então devemos indagar: por que administradores acostumados a tomar decisões sobre pessoas costumam errar frequentemente e, muitas vezes, de forma catastrófica? A prática não deveria levar à perfeição ou próximo da perfeição?
Uma possível resposta para, digamos, esse fracasso na escolha de parceiros pode ser explicado pela inconstante psicologia humana. Pessoas são movidas por desejos e esses desejos constantemente mudam. Por exemplo, um talentoso gestor de pessoas pode desgostar do seu trabalho por considerar mais prazeroso o trabalho de planejamento e estratégia empresarial.
Outra possível resposta é de que a grande maioria de nós, seres humanos, lemos muito mal as outras pessoas. Somos guiados por preconceitos, primeiras impressões e por dados nem sempre confiáveis vindos de outros. O pior é que a maioria de nós não possui a virtude da humildade no momento de julgar alguém. Julgamos aos outros como se a verdade estivesse sempre e inquestionavelmente do nosso lado.
Desse modo, aceitar humildemente a superficialidade e as limitações de nossas percepções é um primeiro grande passo na escolha de parceiros de trabalho. Essa atitude é algo que deve ser cultivado e constantemente mantido, ou seja, não se resume somente ao ato de contratação do profissional.  
A virtude da humildade traz consigo um olhar mais abrangente, pragmático e realístico do que se pode esperar de um eventual parceiro de trabalho. Por conta de nossas limitações cognitivas - sejam elas de ordem epistêmica ou psicológica - não temos condições de analisar detidamente a mente de cada candidato ou parceiro; também, não temos condições de analisar detidamente todas as variáveis externas que poderão envolver a contratação de determinado candidato.
Peter Drucker elaborou quatro princípios básicos que podem ajudar na contratação e no trabalho dos recém-contratados. Importante ressaltar que esses princípios foram elaborados a partir das experiências bem sucedidas de dois personagens importantes do século XX: George C. Marshall (1880 - 1959) e Alfred P. Sloan, Jr (1875 - 1966). O primeiro foi o chefe do estado-maior do exército norte americano na época de Pearl Harbour (1941) e o segundo foi o mítico presidente da General Motors. Drucker afirma que esses dois tinham personalidades bem diferentes; também, pode-se afirmar que suas atividades eram um tanto distintas.

                      George C. Marshall
                            Alfred P. Sloan



                                                              
Todavia, esses dois personagens seguiam basicamente os mesmos princípios com relação à escolha de candidatos para determinado cargo e com relação à gestão de pessoas.

Se sou responsável pela(s) escolha(s) de pessoas para determinado(s) caso(s), esses princípio são:

QUATRO PRINCÍPIOS BÁSICOS[3]

              1) se a pessoa escolhida para determinado cargo não conseguiu um desempenho satisfatório, então o erro foi meu. Ou seja, devo assumir inteiramente a responsabilidade de ter julgado errado a pessoa que não se adequou ao cargo. Obviamente, o constrangimento será tanto maior quanto mais descuidado for o julgamento acerca do candidato e, do mesmo modo, o constrangimento será tanto menor quanto maiores forem as informações obtidas acerca do candidato.

2) Tanto o profissional sênior, quanto o profissional júnior ou mesmo o recém-contratado possuem o direito a um comando competente. Ou seja, os gerentes de uma organização devem assegurar que seus subordinados sejam bem orientados e apresentem um bom desempenho. Se os subordinados forem considerados incompetentes, isso quer dizer que os seus chefes também o são.

3) Todo executivo ou empreendedor deve ter o máximo de cuidado com relação às decisões sobre pessoas, sejam essas decisões com relação à contratação, com relação à escolha de parceiros, ou mesmo nas negociações rotineiras.

4) Por fim, o último princípio é um princípio proibitivo. Segundo Drucker, se deve evitar dar novas tarefas para novos empregados, para alguém que você mal conheça ou não tenha estabelecido ainda uma relação de confiança. A relação de confiança vem ao longo do tempo e com a percepção de quanto o empregado é capaz de “vestir a camisa da empresa”. Nesse sentido, um jovem talento pode não conseguir subir de imediato nos postos mais altos da empresa e isso não por falta de competência, mas justamente porque os diretores ainda não conseguiram estabelecer uma relação de confiabilidade com relação a esse jovem e promissor talento.
Esses quatro princípios devem ser entendidos como uma espécie de orientação geral para os diversos tipos de profissionais da área de administração. Nesse sentido, alguém pode reclamar que esses princípios carecem de um conteúdo mais efetivo que oriente as práticas acerca da gestão de pessoas. Todavia, é importante salientar que Drucker também elaborou o que ele chamou de "passos decisórios" os quais podem ser entendidos como atitudes estruturadas a partir dos quatro princípios acima vistos. Os cinco passos decisórios são:

OS CINCO PASSOS DECISÓRIOS [4]

1) Reflita profundamente sobre a natureza do cargo a ser preenchido e qual o perfil que melhor realizará as tarefas desse cargo. Esse passo está relacionado ao segundo princípio de que "O soldado tem direito a um comando competente".

Muitas pessoas pensam que as tarefas dos cargos de uma empresa ou instituição mudam nada ou muito pouco no decorrer do tempo. Essa percepção é na verdade um grande erro. É óbvio que a descrição do que seja um vendedor não mudou substantivamente desde que essa atividade passou a ser absorvida pela mentalidade capitalista, principalmente nos séculos XIX e XX. Todavia, também parece óbvio que as tarefas de um vendedor dos anos 30 do século XX são bem diferentes das tarefas do vendedor do ano de 2015.
Podemos citar dois fatores que alteram substantivamente as tarefas a serem realizadas por determinado cargo: as mudanças sociais e as mudanças tecnológicas. Em 1930, o comércio de automóveis era voltado quase que exclusivamente para o público masculino, que exigia certa postura do vendedor com relação a esse público alvo. Com a gradativa emancipação feminina, principalmente a partir dos anos 1970, as mulheres começaram a ser percebidas como um interessante público consumidor por diversos setores da produção, entre eles a indústria automobilística.  Em 2015, muitas concessionárias exigem que seus vendedores saibam lidar com os desejos e interesses da clientela feminina. Também, enquanto em 1930 o contato entre vendedor e cliente era quase que exclusivamente "presencial", em 2015 esse contato pode ser feito por meio de redes sociais, o que exige certas habilidades do vendedor para, entre outros, evitar o desgaste prematuro da relação.
Também, a própria atividade de vendas pode mudar de acordo com os interesses da empresa. Por exemplo, se busca um vendedor que saiba lidar com público jovem ou com um público mais maduro? Se busca apenas um vendedor ou alguém que tenha potencial para ser um supervisor de vendas? Se busca um vendedor que seja mais especializado em determinado produto ou alguém que tenha um conhecimento geral sobre os produtos da empresa? Cada uma dessas escolhas exige tarefas diferentes e vendedores com perfis diferenciados.

2) Analise profundamente os currículos dos vários candidatos que estariam qualificados para o cargo. A escolha de candidatos é tão importante que esse processo deveria ser feito por uma equipe multidisciplinar e também pelas pessoas mais importantes dentro da corporação. Drucker sugere que uma boa escolha passa por um processo em que muitos candidatos estiveram envolvidos. Ou melhor, a escolha de um candidato terá mais chances de ser bem-sucedida quanto mais currículos forem analisados.
Depois de uma primeira triagem, que invariavelmente eliminaria os candidatos menos qualificados, é necessário fazer uma nova triagem visando saber quais candidatos se encaixariam com as qualificações  formais exigidas pela empresa. Assim, se o cargo exige uma pós-graduação em gestão de projetos, por exemplo, então os candidatos sem um curso de pós-graduação nessa área estarão, em princípio, automaticamente eliminados. Por fim, sobrando de três a cinco candidatos para a vaga, é necessário analisar qual candidato se encaixa melhor na vaga oferecida. Nessa etapa final de escolha, um instrumento constantemente utilizado é a entrevista. Também se costuma pedir informações acerca do candidato para as empresas por onde ele passou.[5]

3) Reflita bem o modo de como se devem ser analisados os candidatos para determinado cargo. Esse passo decisório está intimamente relacionado ao segundo passo, anteriormente visto.
Drucker é bem enfático em afirmar que se deve focar nos pontos fortes de cada candidato e não nas características consideradas negativas. Assim, o autor da obra "As fronteiras da administração" afirma que a pergunta primordial é: "Quais os pontos fortes de cada um? Estas seriam as virtudes certas para a tarefa?" [6]
A profundidade dessa ideia está na constatação de que todos nós temos pontos fracos que muitas vezes são insuperáveis. Mesmo personagens históricas consideradas bem-sucedidas em algo, possuíam pontos fracos facilmente perceptíveis. Sócrates notadamente foi um grande filósofo, mas também foi um péssimo advogado de si mesmo; Hitler foi um grande líder, mas foi também um péssimo estrategista e debatedor; Van Gogh foi um grande pintor, mas possuía uma personalidade autodestrutiva; Steve Jobs foi um grande visionário, mas não era bom em trabalhos em equipe.
Agora, imagine se você tivesse alguém como o Steve Jobs como candidato a algum cargo na sua empresa. Será que é razoável só levar em conta a inabilidade dele em trabalhar em equipe?
Segundo Drucker, executivos de sucesso não costumam primeiramente buscar pontos fracos nos eventuais parceiros de negócios. Desse modo, não seria razoável direcionar as contratações e escolhas de pessoas para determinados cargos baseado principalmente nas deficiências, deve-se almejar os pontos fortes de cada candidato. Voltando a Marshall e Sloan, ambos partilhavam da ideia de que o que interessa principalmente numa contratação é a capacidade do candidato conseguir cumprir a tarefa. Assim, a escolha entre candidatos deve ser direcionada para aquele que é melhor do que os outros e que pode cumprir excelentemente as tarefas.
Digamos que uma empresa precise de um gerente de projetos. O melhor candidato possui experiência, contatos importantes à mão e mais sucesso do que os outros candidatos. Todavia, esse candidato é extremamente mal-educado com a mídia, exige um nível de dedicação absurdo dos seus subordinados e é reconhecidamente um borracho. Se esse candidato for realmente o melhor gerente de projetos disponível no mercado, então todos os aspectos considerados negativos podem, em grande medida, serem considerados inúteis ou irrelevantes. O que se pode fazer para tentar atenuar as eventuais falhas desse candidato é cerca-lo de profissionais capazes de suprir essas falhas.
Drucker nos informa que ao selecionar membros do gabinete, os ex-presidentes norte-americanos Franklin Roosevelt e Harry Truman sempre afirmavam: "Não me falem de suas deficiências. Primeiro digam-me o que cada um é capaz de fazer."[7]

4) Tente avaliar os candidatos por meio de pessoas que já trabalharam com eles. Ou seja, tente buscar o maior número de informações dos candidatos por meio do maior número de fontes possíveis; evite o erro de tomar conclusões em avaliações muito individuais ou baseadas em visões particulares. É prudente montar um quadro do candidato por meio das várias peças informativas acessíveis.
Segundo Drucker, a avaliação de um só executivo, mesmo que altamente competente, pode ser considerada inútil. Como já colocado, todos nós temos uma forte tendência a ler mal as pessoas, ou seja, a maioria de nós não vai além de uma leitura superficial sobre os outros. Somos guiados por primeiras impressões, preconceitos, ideologias, manias e uma série de elementos psicológicos que costumam ofuscar perfis alheios.
Para evitar ou diminuir consideravelmente esse ofuscamento, duas atitudes se fazem necessárias. A primeira atitude, exposta no segundo passo decisório, é analisar detidamente os currículos dos candidatos, tentando extrair os perfis formal e psicológico dos candidatos. A segunda atitude é justamente contactar ex-chefes e colegas dos candidatos. Obviamente, é preferível que essas pessoas tenham uma relação, digamos, de neutralidade com relação à contratação ou não do candidato investigado.

5) O quinto e último passo decisório está relacionado com a ideia de que o administrador deve estar seguro de que o candidato compreende claramente as tarefas a serem executadas. Para estabelecer essa segurança, Drucker recomenda, supondo que o candidato preencheu, por exemplo, o cargo de gerente regional de vendas, que o executivo chame o candidato e diga:

Você agora tem sido o gerente regional de vendas por três meses. O que precisa fazer para ser um sucesso em seu novo emprego? Pense sobre isso e retorne aqui em uma semana ou 10 dias com suas reflexões por escrito. Mas eu posso adiantar agora: as coisas que você fez para conseguir essa promoção são, quase com certeza, as coisas erradas para serem feitas agora. [8]

Essa conversa é necessária por conta de dois fatores. Primeiro, o bom administrador deve cultivar uma atitude utilitarista com relação à empresa ou instituição, ou seja, a atitude correta corresponde àquilo que traz o maior bem para o maior número de pessoas dentro da empresa, desde que esse bem não fira os da sociedade mais amplamente entendida. Ou seja, o trabalho ruim de um empregado pode prejudicar o trabalho dos vários segmentos de uma empresa. Segundo, muitas pessoas independentemente de capacidade, competência e inteligência possuem uma tendência a continuar fazendo o que costumavam fazer no antigo cargo ou na antiga situação de trabalho.
Assim, não parece intuitivamente óbvio que um novo cargo ou um novo emprego exijam um tipo de comportamento diferente e a consecução de novas tarefas. Parece bem humano aceitar o seguinte pensamento condicional: "se fui promovido para o cargo, basta continuar fazendo as mesmas coisas que eu fazia antes, pois a diretoria está satisfeita com o que eu tenho feito." O próprio Drucker relata que ele já foi vítima da armadilha do comportamento inercial.
Se, por exemplo, um empregado bem-sucedido no ramo de vendas é promovido a gerente de vendas, é obrigação do chefe responsável avisar que sua relação com a diretoria mudou; talvez seu modo de se portar e de se vestir tenham que passar por mudanças substantivas; a visão do que seja “vender um produto” se torna outra, pois o gerente de vendas deve possuir uma visão mais abstrata ou teórica do que significa vender algo; também, o recém-promovido terá que se adequar a novos perfis e a novos círculos sociais.
Desse modo, é dever do bom administrador despertar a ideia de que o novo cargo ou um novo emprego exigem um novo tipo de comportamento, um novo foco e mesmo relacionamentos diferentes.

CORAGEM E RESPONSABILIDADE

Não obstante a devida utilização dos quatro princípios e os cinco passos decisórios, Drucker nos alerta que mesmo assim algumas decisões sobre pessoas têm boas chances de fracassarem. Não poderia ser diferente, pois as decisões sobre pessoas podem ser consideradas de alto risco. Isso acontece, entre outros, por conta de dois importantes fatores: como colocado no início deste artigo, pessoas são movidas por desejos e esses desejos tendem a mudar ao longo de uma existência; também, constantemente acontece do temperamento de alguém não ser apropriado para as tarefas que o cargo exige. Assim, um temperamento explosivo talvez seja menos aceito num vendedor do que num supervisor de vendas ou no gerente de marketing quando esses lidam com o público alvo.
É muito difícil saber se o candidato ou o recém alocado para uma vaga qualquer possui o temperamento apropriado para determinado cargo. É lugar comum afirmar que só a experiência e o tempo podem mostrar se houve ou não o "encaixe". Caso seja percebido que não houve esse encaixe entre o trabalhador e o cargo, então o bom administrador deve quebrar essa relação e preferencialmente o mais rápido possível. Esse não é um trabalho simples, mas é algo que deve ser feito. É muito importante que o executivo que permitiu o encontro entre o cargo e o empregado inadequado se responsabilize plenamente pelo fracasso. Insistir na manutenção da pessoa inadequada a determinado cargo pode acarretar em grandes prejuízos para toda empresa ou instituição. Assim, evitar uma demissão ou um “rebaixamento” de função não significa imediatamente ser alguém de coração bom, significa ser alguém inconsequente, irresponsável ou mesmo cruel. Em muitos casos, a estratégia mais acertada é reconduzir o empregado ao cargo anterior.
Lidar profissionalmente com outras pessoas não é uma tarefa fácil, pois as relações humanas dentro do ambiente de trabalho inevitavelmente exigem decisões éticas difíceis. Nesse sentido, o profissional da administração deve ser capaz de aplicar a justiça e de reconhecer plenamente a sua grande responsabilidade. Como afirmado, o gerente, ou o executivo de uma empresa deve cultivar certa sensibilidade utilitarista na tomada de decisões. O utilitarista leva muito a sério as consequências de uma decisão, mesmo que essas, muitas vezes, não estejam sob o controle do agente. Não somos oniscientes e, por isso, saber de fato as eventuais consequências quando da escolha de um candidato não está ao nosso alcance. Se a estatística de Drucker estiver correta – no que tange à ideia de que se costuma errar muito com relação à gestão de pessoas -,[9] então o bom gestor deve também cultivar a virtude da coragem para reconhecer devidamente decisões equivocadas. Às vezes, é necessário passar por cima de interesses pessoais, sentimentos, convicções visando o bem comum.
Aristóteles, na obra Ética a Nicômacos, trata assim a virtude da coragem:

Por enfrentarem o que é penoso, como já dissemos, que as pessoas são chamadas corajosas. Logo, a coragem também é seguida de sofrimento, e é justamente louvada por isto, pois é mais difícil enfrentar o que é penoso do que abster-se de coisas agradáveis. Entretanto, os fins que a coragem põe diante de si são presumivelmente agradáveis, mas os aspectos que a tornam agradável estão ocultos pelas circunstâncias que a cercam, como acontece nas competições atléticas; com efeito, os fins a que visam os pugilistas, por exemplo, são agradáveis - a coroa de louros e as honrarias - mas os golpes que eles recebem são dolorosos para pessoas de carne e osso, da mesma forma que todos os seus preparativos; e como os golpes e os preparativos são muitos, os fins, que são alguma coisa de pequenas proporções, nada parecem ter de agradáveis em si. [10]


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DRUCKER, Peter Ferdinand. As fronteiras da administração. Tradução: Ricardo Bastos Vieira. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Tradução: Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1992. (3ª edição)






[1] Esse texto, escrito em 1985, se encontra na obra As fronteiras da administração.
[2] DRUCKER (2012, p. 101).
[3] DRUCKER (2012, pp. 102-103).
[4] DRUCKER (2012, pp. 104 – 108). Nesta parte, eu tomei a maior liberdade de acrescentar avaliações minhas.
[5] Retornarei a esse ponto no quarto passo decisório.
[6] DRUCKER (2012, p. 105).
[7] DRUCKER (2012, p. 106).
[8] DRUCKER (2012, p. 107). O negrito é meu!
[9] DRUCKER (2012, p. 101). Na verdade, Drucker afirma que 33% das escolhas sobre pessoas podem ser consideradas fracassos monumentais.
[10] ARISTÓTELES (1992, 1117a, parte 9).

RECOMENDAÇÕES 


ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Tradução: Mário da Gama Kury. Prefácio: José Reinaldo Lopes. São Paulo: Ed. Madamu, 2020. 



ARISTÓTELES. A Ética: textos selecionados. Tradução: Cássio M. Fonseca. Bauru, SP: EDIPRO, 2003. 



DRUCKER, Peter Ferdinand. As fronteiras da administração. Tradução: Ricardo Bastos Vieira. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.


DRUCKER, Peter Ferdinand. A administração na Próxima Sociedade. Tradução: Nivaldo Montingelli Jr. São Paulo: Nobel, 2002.