quarta-feira, 14 de agosto de 2019

A ESCOLA METÓDICA RANKEANA E O POSITIVISMO - PARTE II


A ESCOLA METÓDICA RANKEANA E O POSITIVISMO - PARTE II


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Resolvi dividir a postagem atual em duas partes por três motivos: 
- deixar a postagem mais "enxuta", visando não espantar tanto quem se desanima rapidamente com textos mais longos; 
- a "Sexta Exigência" exige um maior esforço, digamos, filosófico e creio que uma sensibilidade histórica um pouco mais apurada. Por conta desses, a Sexta Exigência demandou um texto maior; 
- dar mais tempo para eu pensar sobre uma próxima postagem que, provavelmente, será ainda sobre Filosofia da História. 

Vamos, então, à Sexta Exigência...


SEXTA EXIGÊNCIA 

O historiador deve ter uma compreensão da totalidade. Essa compreensão está baseada no nexo causal. Pelo nexo causal é possível perceber a sequência de condições que tornam um fator possível por intermédio de outro fator. Essa percepção leva à ideia de que há uma totalidade nos eventos históricos. Ranke relaciona essa totalidade a algumas ideias de cunho metafísico: vir-a-ser, ser-eficiente, fazer-se valer, um desvanecer-se. 
Tentando explicar essa exigência, Ranke argumenta que a história de um povo não é igual a todos os elementos individuais de suas manifestações vivas. A história de um povo é o conjunto de seu processo de desenvolvimento, de seus feitos, de suas instituições, de sua literatura... Para capturar esse "processo de desenvolvimento" é necessária uma investigação rigorosa, um aprendizado lento com a utilização de documentos.
Interessante notar que Ranke reconhece que a realização da exigência da totalidade é "tarefa impossível". Ele arremata essa impossibilidade com a seguinte frase: "Somente Deus conhece integralmente a história universal."

Vistas as seis exigências acima elencadas, fica mais fácil perceber porque Ranke considera a história uma arte. Para o historiador alemão, a história é diferente das demais ciências porque ela é, simultaneamente, uma arte. A história é ciência porque ela recolhe, descobre, analisa em profundidade. A história é arte porque ela representa e torna a dar forma ao que foi descoberto e apreendido pelo historiador; resumindo, a pesquisa histórica tem a capacidade de recriação.
Enquanto ciência, a História se aproxima da filosofia; enquanto arte, a História se aproxima da poesia. Todavia, enquanto a Filosofia e a Poesia navegam no plano das ideias, a História não pode prescindir do plano do real. Desse modo, a História associa Filosofia e Poesia de modo muito peculiar. Assim, para Ranke a Filosofia e a Poesia se orientam por algo ideal, já a História possui um dos seus pés fincado no plano ideal e outro pé fincado no plano da realidade.
Não é incomum associar a Escola Metódica Rankeana com o positivismo. A aproximação com o positivismo se faz porque Ranke defende um tipo de explicação histórica que leva em conta as leis que existem no espírito do historiador como vimos na segunda exigência. Embora seja um tanto injusto afirmar que Ranke seja um positivista radical, não parece ser injusto afirmar que o historiador alemão entendia a pesquisa histórica como científica em muitos aspectos. Assim, o positivismo rankeano está relacionado a alguns aspectos que tentaremos resumidamente elencar.
 No positivismo radical, a explicação histórica não é essencialmente diferente daquilo que faz o físico, o biólogo ou o químico.  Não há, nesse sentido, uma descontinuidade radical entre o fazer histórico e o que faz o físico, por exemplo.  Importante ressaltar que a Física tem sido considerada o modelo de ciência desde a Revolução Científica na modernidade. 
 A explicação científica possui variados níveis de refinamento e de verdade.  Todavia, de maneira geral, pode-se afirmar que a ciência busca explicações universais baseadas em leis empíricas que comprovam as particularidades dos fenômenos naturais.  Idealmente, essa maneira de encarar o conhecimento é dedutiva.  O método dedutivo tem a seguinte estrutura: 

Premissa 1 - Todo homem é mortal.   (Todo "A" é "B")
Premissa 2 - Sócrates é um homem.   ("C" é "A" )
Conclusão - Logo, Sócrates é mortal.  (Logo, "C"'é "B")

 Numa dedução, a conclusão advém logicamente das condições antecedentes ou premissas; essas premissas se combinam com certos dados empiricamente verificáveis,  estruturando leis gerais.  Tentando fazer um paralelo de como a dedução científica se aplicaria à explicação de tipo histórica, podemos contar o seguinte exemplo: 
Suponha a queda de uma telha qualquer. Se quero explicar a queda de uma telha, devo referir-me à Lei Geral da Gravitação e, também, à condição antecedente de que a telha, infelizmente, estava sem apoio. 
 Suponha, agora, que se queira explicar a  Revolução Francesa.  Se quero explicar essa Revolução, devo referir-me a alguma lei geral e, também, a alguma condição antecedente que fez eclodir a Revolução.  Uma lei geral, nesse caso, seria algo do tipo: as pessoas buscam melhorar a sua vida.  A condição antecedente seria algo do tipo: o povo estava insatisfeito com o rei Luis XVI.
Segundo Carl Hempel, filósofo alemão da ciência:
 "A explicação histórica busca, igualmente, mostrar que o acontecimento em causa não decorreu do "acaso", mas era de se esperar, em razão de certas condições antecedentes ou sincrônicas. Isso, era de se esperar, não corresponde à profecia ou adivinhação, mas uma racional antecipação científica, baseada na admissão de leis gerais." (The Functions of General Laws in History).
A partir da citação acima, podemos reforçar a ideia de que o objetivista defende a existência de uma ligação lógica ou conceitual entre as leis e a explicação histórica. 
Parece claro que a aplicação da fórmula dedutiva remete à ideia de que os eventos históricos são necessários. Por isso,  Hempel não aceita a ideia de que os acontecimentos históricos sejam contingentes ou decorram do acaso. 
Uma maneira radical de afastar essas possibilidades é afirmar que o evento histórico "X" qualquer tinha que ocorrer, ou seja, que ele aconteceu necessariamente.  É isso que o requisito dedutivo da explicação científica assegura. Também, objetivistas a la Hempel acrescentariam que esse requisito só pode ser satisfeito por meio de leis gerais. 
Não é forçoso concluir que a ideia da existência de leis gerais nos eventos históricos possui um papel fundamental no tipo de explicação positivista.  Todavia, esse tipo de explicação histórica baseada em leis gerais não parece estar de acordo com a prática do historiador.  Em verdade, a grande maioria dos historiadores nunca se referem a leis gerais quando explicam os acontecimentos históricos; e, na vasta maioria dos casos, é mesmo de se duvidar que eles estejam em condições de fornecer alguma lei geral que "cole"' necessariamente os eventos históricos.   Desse modo, parece duvidoso pensar que a explicação do tipo histórica seja universal e necessariamente verdadeira  para qualquer mundo possível.  As generalizações históricas, quando muito, apontam para a ideia de que as explicações históricas não possuem a mesma estrutura das explicações cientificas. 
Duas respostas a essa objeção, com relação às leis gerais, podem ser feitas: 
1)  Apesar do conhecimento histórico se afastar de explicações cientificamente fundadas, os historiadores costumam defender certo ideal científico  quando do confronto de versões.  Por exemplo, quando duas ou mais explicações sobre um evento histórico "X" entram em choque, os historiadores costumam apelar para a comprovação  empírica das fontes históricas. 
2)  Mesmo nas ciências naturais, as leis universais e as relações dedutivas devem, frequentemente, ceder algo a hipóteses probabilísticas e a relações indutivas; com efeito, as leis a que se pode recorrer muitas vezes não são universais, mas estatísticas ou probabilísticas.  Desse modo, o conhecimento histórico se adequaria melhor à estrutura probabilística que é um uma versão mais esbatida do modelo científico. 
Mesmo atenuada, a tese positivista foi e continua sendo muito atacada por conta, entre outros, da insistência  de se entender a explicação histórica do mesmo modo como se entende a explicação científica advinda das ciências naturais, notadamente a Física.  No século XX, uma série de teóricos da história, conhecidos como idealistas, atacaram esse pretenso cientificismo do conhecimento histórico.




quarta-feira, 26 de junho de 2019

A ESCOLA METÓDICA RANKEANA E O POSITIVISMO - PARTE I


A ESCOLA METÓDICA RANKEANA E O POSITIVISMO - PARTE I


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Resolvi dividir a postagem atual em duas partes por três motivos: 
- deixar a postagem mais "enxuta", visando não espantar tanto quem se desanima rapidamente com textos mais longos; 
- a "Sexta Exigência" exige um maior esforço, digamos, filosófico e creio que uma sensibilidade histórica um pouco mais apurada. Por conta desses, a Sexta Exigência demandou um texto maior; 
- dar mais tempo para eu pensar sobre uma próxima postagem que, provavelmente, será ainda sobre Filosofia da História. 

INTRODUÇÃO

Leopold von Ranke (1795 - 1886)
Pode-se afirmar que a Escola Metódica Rankeana se baseou no que foi estabelecido no texto "O CONCEITO DE HISTÓRIA UNIVERSAL"[1] de Leopold von Ranke, escrito em 1831.  Nesse texto, Ranke estabelece o modo de como o historiador deveria se comportar diante do seu objeto de pesquisa.  Para tanto, o historiador alemão  estabeleceu não só princípios formais: como o uso de uma metodologia e de normas;  Ranke também se preocupou com princípios morais e até mesmo estéticos que deveriam nortear o trabalho do historiador. 
O texto "O conceito de história universal" [2] mostra claramente seis exigências que deveriam nortear a pesquisa histórica.  Todavia, além dessas seis exigências há, também, duas espécies de princípios que norteiam, estruturam e fundamentam essas exigências.  O primeiro princípio é de que a pesquisa histórica tanto será melhor quanto mais equilibrada for a relação entre os elementos concretos e os elementos abstratos que cercam o fenômeno histórico.  O segundo princípio parte da ideia controversa de que a História é uma arte.  Pedagogicamente, é mais frutífero explicar o primeiro princípio antes de mostrar as seis exigências estabelecidas por Ranke para a pesquisa histórica;  depois de apresentadas as exigências, fica mais simples entender o porquê de Ranke considerar a História como sendo uma arte. [3]
A partir do primeiro princípio, há a rejeição da ideia de que a pesquisa histórica deva voltar-se somente para a busca de algum princípio abstrato mais elevado e que supostamente subsistiria ao fenômeno histórico,  o qual está baseado na concretude da documentação.  O estabelecimento de algum princípio abstrato na pesquisa histórica incorreria em dois problemas:  o perigo de se transformar a História numa Filosofia da História a la Hegel [4], contaminada com elementos teleológicos  e de deixar o discurso histórico totalmente à mercê das especulações do historiador, o que poderia cair numa espécie de ficção.  Ranke sempre insiste que o historiador deve dedicar seus esforços àquilo que é concreto, em outras palavras, às fontes documentais oficiais, na visão dele. Hegel (1770 - 1831)

Com o primeiro princípio, ou o princípio do equilíbrio na cabeça, pode-se agora passar para as seis exigências da pesquisa histórica estabelecidas por Ranke. 

PRIMEIRA EXIGÊNCIA 
O historiador deve amar a verdade. Na medida em que o historiador reconhece a importância de determinado evento histórico, seja ele mais ligado a um acontecimento ou a um indivíduo, o historiador adquire uma consideração elevada por aquilo que aconteceu, se passou, se manifestou. Esse amor leva fortemente em conta o princípio do equilíbrio, pois o historiador deve equilibrar os elementos objetivos - por exemplo, o "quando" e o "onde" - com a sua imaginação. Todavia, o uso da imaginação sem amarras trabalha contra a verdade histórica, pois somente o uso da imaginação acaba por reconhecer apenas o reflexo das teorias e das idiossincrasias do historiador. Somente o uso da imaginação faz com que a História caia numa espécie de ficção.

SEGUNDA EXIGÊNCIA 
O historiador deve fazer uma investigação documental pormenorizada e aprofundada. Ranke separa essa investigação em dois níveis. No primeiro nível, o historiador deve se dedicar ao fato histórico, ou seja, ele deve ser capaz de explicar as condições de aparecimento deste fato e o seu contexto. No segundo nível, o historiador deve ser capaz de perceber a formação espiritual do fato histórico. Essa percepção se baseia na harmonia das leis que atuariam no espírito do historiador e também por meio do objeto que é analisado. Para Ranke, a alma coletiva baseia-se na harmonia do indivíduo. O entendimento dessa alma coletiva tanto será melhor quanto mais o historiador praticar a imparcialidade.
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TERCEIRA EXIGÊNCIA 
O historiador deve ter um interesse universal. Ranke critica os historiadores que possuem interesses parciais ou específicos, como, por exemplo, historiadores que só pesquisam as instituições  burguesas, historiadores que pesquisam apenas os avanços da ciência ou das realizações artísticas, ou mesmo aqueles que só se interessam por História Política. Para o historiador alemão, todos os campos da história estão na verdade essencialmente interligados. Saber perceber como a religião pode influenciar a política, por exemplo, faz parte dessa sensibilidade universal que o historiador deve possuir. A base dessa universalidade está no treinamento de imparcialidade do historiador. A imparcialidade favorece o entendimento da alma coletiva. Nesse sentido, a imparcialidade rankeana não significa falta de interesse, ela significa um interesse no conhecimento puro e universal, o qual não é turvado por opiniões preconcebidas ou por demais provincianas. 

QUARTA EXIGÊNCIA 
Os eventos históricos possuem uma fundamentação baseada no nexo causal. O nexo causal está relacionado a duas outras ideias: eventos simultâneos se influenciam mutuamente e o evento histórico precedente condiciona o evento posterior. Assim, há uma relação íntima de causa e efeito. Para Ranke, estudar a História por meio de relações de causa e efeito denomina-se pragmática.
Ranke critica a pragmática moderna por ela assentar as causas históricas em basicamente dois desejos humanos: o egoísmo e a ambição de poder. Ele nega que esses desejos sejam as únicas causas dos acontecimentos humanos. 
A pragmática rankeana está baseada na documentação de informações verdadeiras, as quais mostrarão as verdadeiras razões que causaram determinado evento histórico. Quanto mais documentada, exata, produtiva a investigação, mais livremente a arte do historiador é capaz de se movimentar. Nesse sentido, a teoria rankeana faz uma relação estreita entre documento e verdade, a qual serve como fundamento para a pesquisa histórica. O pragmatismo rankeano é documental.

QUINTA EXIGÊNCIA 
O historiador deve exercer o apartidarismo. O apartidarismo está relacionado, entre outros, com a ideia de que o estudo da história universal possui, digamos assim, dois senhores: o senhor do presente e o senhor do passado. Ranke reconhece que é muito difícil para o historiador se manter apartidário, no sentido de tentar ver ou perceber a verdade das disputas de um ponto de vista equidistante entre duas opiniões opostas, ainda mais que o historiador está fortemente influenciado pelo espírito da sua época. Ranke acredita que o bom historiador seja capaz de perceber a essência dos elementos em conflito, ou seja, que o historiador é capaz de desconsiderar valores próprios quando esses não são úteis para a explicação histórica.


REFERÊNCIAS E RECOMENDAÇÕES

[1] Com relação a essa obra, atualmente não há traduções em Português minimamente acessíveis. Por isso, recomendo a edição com a tradução para a língua inglesa. 

[2] Para uma perspectiva mais contextualizada da obra de Ranke, recomendo a obra "Teoria da história Vol. II" de autoria de  José D'Assunção de Barros. Importante ressaltar que comumente Ranke é percebido como um historiador positivista. Mas essa aproximação com os ideais positivistas merece muitos cuidados. 
BARROS, José D'Assunção de. Teoria da história Vol. II: Os primeiros paradigmas: positivismo e historicismo. Editora Vozes, 2014. 

[3] Outra obra interessante de consulta do pensamento de Ranke, é o livro do professor  Estevão de Rezende Martins. O professor Estevão Martins foi meu professor, entre outros, de Teoria da História na UnB. 
MARTINS, E.R.História pensada: teoria e método da historiografia europeia do século XIX.  São Paulo: Editora Contexto, 2015. 

[4] Não há como falar de Filosofia da História sem citar a obra "Filosofia da História" do filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel. 
HEGEL, Georg W.F. Filosofia da História. Brasília: Editora UnB, 1996. 




























terça-feira, 14 de maio de 2019

A GENEALOGIA DA MORAL EM NIETZSCHE - PARTE II


Na obra "Ecce Homo", Nietzsche descreve a Genealogia da Moral (GM) como sendo um trabalho construído por um psicólogo que pretende criar uma alternativa para o ascetismo vigente, por meio de uma transvaloração de todos os valores. A “GM” possui um Prólogo e três ensaios, traduzidos como dissertações por Paulo César de Souza. Essas dissertações são:


1) Primeira dissertação: "bom e mau", "bom e ruim";
2) Segunda dissertação: "culpa", "má consciência" e coisas afins e
3)  Terceira dissertação: “o que significam ideais ascéticos?”

O primeiro ensaio examina aquilo que pode ser considerado a psicologia do cristianismo. Nesse ensaio, Nietzsche mostra o nascimento do cristianismo e como o ressentimento cristão operou uma espécie de transvolaração/tresvaloração dos valores em cima da moral do senhor; essa primeira tresvaloração significou um rebaixamento ou uma decadência do espírito humano. O segundo ensaio fornece o que pode ser considerado uma psicologia da consciência. Entre outros, nesse ensaio encontramos a ideia provocante de que não é nem nas éticas tradicionais e nem na voz de Deus que se encontra a verdadeira inclinação humana; aquilo que poderíamos chamar de consciência moral se baseia no instinto de crueldade, o qual proporciona prazer e contentamento para o agente. Relacionada à ideia de crueldade, há também uma crítica à interpretação da ideia de castigo feita pela genealogia tradicional. Finalmente, o terceiro ensaio é uma investigação acerca do que seja o ascetismo ou o ideal asceta, relacionando-o, obviamente, à moral dos fracos. O ascetismo representa uma espécie de perversão da vontade humana, encaminhando essa vontade para o niilismo. Nesse ensaio, também é importante notar que Nietzsche fornece uma espécie de contra-ideal com relação ao ascetismo. Esse contra-ideal é estruturado contra o cristianismo, contra a percepção científica do mundo e a favor da vontade de poder.
Por essa breve descrição dos ensaios, podemos perceber a grande quantidade de temas que Nietzsche analisou. Os temas por si mesmos já possuem uma complexidade normal que tem merecido páginas e páginas de estudo por parte de importantes intelectuais das mais diversas áreas do conhecimento. Além dessa dificuldade normal, nosso autor lida com esses temas de uma maneira não usual e se apropria deles, muitas vezes, de uma maneira muítissimo peculiar. Por conta disso, tentaremos focar em três temas que perpassam não só a “GM”, como também boa parte do pensamento moral nietzscheano. Esses temas são: a reconstrução histórica da moral, o psicologismo
nietzschiano e a vontade de poder.

Inicialmente, é importante ressaltar que a genealogia da moral proposta por Nietzsche não é estruturada em torno da razão, como o são as éticas tracionais de fundo aristotélico, kantiano ou utilitarista. Para ele, a moral moderna representa um sistema de erros que acabaram sendo incorporados pelo pensar, sentir e viver humanos. A moralidade moderna ou tradicional por conta do seu caráter racional tem afastado o homem de sua verdadeira essência ou natureza. Nietzsche aponta cinco erros que levam a entender equivocadamente o ser humano, quatro desses erros se encontram na obra Gaia Ciência 115 e um deles se encontra na “GM”. Esses erros são: nós percebemos a nós mesmos de forma incompleta, nós atribuímos a nós mesmos atributos fictícios, nós nos colocamos num falso ranking com relação aos animais e a natureza, nós constantemente inventamos tabelas daquilo que seja o bom ou o correto e a aceitamos como sendo algo eterno e incondicional. O quinto erro, encontrado logo no início do Prólogo da “GM”, pode ser considerado subjacente  a todos os outros apontados e serve como referência e também orientação para o leitor entender a pesquisa nietzscheana. Esse erro aponta para a ideia de que "nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos - e não sem motivo. Isso acontece porque nós nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos? Uma das barreiras que impede o encontro desse eu, ou do homem, consigo mesmo é justamente a moralidade moderna, a qual se acostumou a aceitá-la como uma espécie de algo em si e incorporada na natureza humana.
A “GM” convida o leitor a avaliar valores que estão profundamente arraigados na consciência moral dos homens, os quais causam medo, apequenamento e barreiras para o instinto de liberdade ou vontade de poder. Para tanto,
é preciso pensar para "além do bem e do mal". No Prólogo:6 da “GM”, Nietzsche defende que a moralidade moderna é na verdade uma ameaça e um sistema perigoso que nos orienta a abrir mão do presente em prol de um futuro, digamos, abstrato. Esse tipo de moralidade, orientado pelo desenvolvimento da cultura cristã, não é capaz de oferecer o mais alto brilho e potência ao tipo homem. Assim, a cultura moderna produz apenas um homem domesticado, manso e civilizado.
Essa cultura de rebanho é alicerçada, principalmente, nos ideais cristãos e democráticos, os quais vão desaguar numa espécie de compaixão comunal. Também, a cultura de rebanho traz consigo os cinco erros apontados anteriormente. Esses erros resultaram num imenso auto-engano. Assim, a cultura de rebanho promete conforto no presente, esperança de um futuro melhor e, o mais importante, a redenção de um passado de culpa (BGE, 202). Para tentar desmascarar a farsa que é a moral de rebanho, Nietzsche recorreu principalmente a três instrumentos: uma  genealogia  da moral por meio da hermenêutica histórica; uma psicologia dos supostos valores morais visando desconstruí-los e a uma espécie de entendimento relativístico dos valores, entendendo-os como sendo o resultado de vontades tão diferentes e, muitas vezes, opacas à razão.

Nietzsche reconhece que a sua genealogia da moral faz parte de uma tradição de estudos conduzida principalmente pelos genealogistas  ingleses. Todavia, o filósofo alemão considera o trabalho inglês bastante superficial por ser pouco crítico, com pouca densidade psicológica e histórica. Assim, o desejo de Nietzsche era fazer uma história tão crítica de acordo com a maxima agudeza que o olhar do historiador pode alcançar; esse máximo alcance traria consigo a imparcialidade. Com esses elementos seria possível montar uma verdadeira história da moral.
Na parte 3 do Prólogo da GM, Nietzsche nos informa que desde os 13 anos estava interessado nas verdadeiras origens do bem e do mal. Nas suas pesquisas, ele conseguiu separar o preconceito teológico do moral, conseguiu também entender que a origem do bem e do mal não estão para além do mundo ou se encontram em algum lugar transcendente. Essas pesquisas levaram à conclusão de que, na verdade, Deus,notadamente o Deus cristão, é o pai do mal. Como ressaltado, ou ao do autor deve essa conclusão alguma educação histórica e filológica, além de um senso seletivo com relação a questões psicológicas. Assim, trabalhos como "além do bem do mal", "GM" e "Ecce homo" tentam desacralizar os conceitos de bem e de mal e também retirar seu pretenso conteúdo apriorístico; nesse sentido, o criticismo nietzscheano se voltará constantemente contra o cristianismo e a ética kantiana.
É necessário ressaltar que, logo no início da Primeira Dissertação, Nietzsche presta uma certa homenagem aos psicólogos ingleses, também chamados de microscopistas da alma, pois eles estão dispostos a revelar a verdade, mesmo que ela seja feia, repulsiva,  amoral, acristã. No entanto, a tendência extremamente mecanicista de se aproximar de questões de valor por parte dos ingleses desagrada profundamente Nietzsche. Esse espírito mecanicista torna a genealogia inglesa um tanto desengonçada.

Além de tudo isso, Nietzsche identifica nos genealogistas tradicionais uma tendência teleológica, estruturada na confusão entre a origem e a finalidade de determinado valor. Esse erro consiste em sublinhar alguma prática institucional ou social contemporânea e colocar essa prática no marco zero do processo histórico. Assim, por exemplo, os genealogistas tracionais descobre no castigo algum tipo de finalidade - como a vingança, a intimidação, ou qualquer outro - e colocam  ingenuamente essa finalidade como sendo a causa de origem do castigo [GM 2:12]. A hermenêutica nietzscheana aponta para a ideia de que a causa da gênese de uma coisa e a sua utilidade final, a sua efetiva utilização e inserção em um sistema de finalidades são duas coisas totalmente diferentes. Assim,a realidade histórica e os valores podem ser sempre interpretados para novos fins; novas interpretações criam novas utilidades. Assim o ajuste interpretativo cria novos sentidos e finalidades que obscurecem os sentidos e finalidades anteriores. Desse modo, se imaginou o castigo como inventado para castigar. Mas, todos os fins e todas as utilidades são apenas indícios de uma vontade de poder, a qual se apoderou de algo menos forte e imprimiu algum tipo de função, a qual não possuía um sentido maior, senão a conquista e o desejo de dominar.
Uma das conclusões mais instigantes da pesquisa nietzscheana é aquilo que ele chamou de fato primordial de toda a história [BGE: 259].

Esse fato é justamente a vontade de poder ou extinto de liberdade. Obviamente, afirmar que a vontade de poder é um fato não significa estar comprometido com uma superficial ou simplória análise empiricista, tão comum entre os ingleses. Talvez, o treinamento filológico de Nietzsche levou-o a ter uma visão de que nenhum fato existe por si próprio, ou melhor, todo fato requer uma interpretação. Assim, nenhum texto fala por si próprio, todo texto exige uma interpretação a qual pode ou não estar ligada a algum sentido do que seja a verdade. Aqui está o grande atrito entre a visão hermenêutica nietzscheana sobre a moral e as éticas apriorísticas de fundo kantiano. Nietzsche acusa os pensadores modernos de fixar um conjunto de leis da natureza, quando na verdade eles estão projetando suas próprias aspirações sobre o mundo natural. O homem moderno, marcado por ideais democráticos e cristãos, construiu uma natureza que acomoda traços de racionalidade, igualitarismo, perdão, bom ordenamento, causa efeito, entre outros valores e ideais decadentes. Assim, a interpretação democrática do mundo sofre de moralismo decadente, ou só de moralismo, problema o qual a interpretação nietzscheana se afasta por conta da descoberta da vontade de poder. Essa vontade permite uma nova apreciação do que seja a dinâmica da vida, incluindo obviamente as mais profundas e primitivas emoções humanas.

Assim, a genealogia da moral de Nietzsche procura os mais profundos, digamos assim, afetos da humanidade e como eles devem ser propriamente apreciados. Esses afetos acabam por desembocar numa espécie de instinto primitivo ou chamado da natureza: a vontade de poder. Essa vontade tem como principal característica o desejo de a tudo dominar.
É importante ressaltar que o vitalismo nietzscheano e a sua genealogia não se acomodam bem ao vitalismo darwinista.O autor alemão considera que a teoria da evolução de Darwin considera apenas a adaptação em termos de fatores  externos, sendo por isso insuficiente para entender o desenvolvimento do animal humano com relação aos seus códigos morais. Assim, a interpretação darwinista desconsidera uma dimensão importante da vida, a qual Nietzsche chama de "atividade", do alemão "Aktivität" [GM 2:12]. Desse modo, a essência da vida é baseada em forças espontâneas, agressivas, expansivas; a verdadeira essência da vida permite a criação de novas formas, interpretações e direções, forças cuja ação necessariamente precede a adaptação. Aliás, a adaptabilidade humana é, na verdade, uma atividade de segunda ordem, uma reatividade.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

A GENEALOGIA DA MORAL EM NIETZSCHE - PARTE I


PARTE I




Nietzsche (1844 - 1900) possui uma obra intitulada "Genealogia da moral" (doravante “GM”), a qual por si própria fornece uma boa aproximação do que seja a moralidade para o filósofo alemão. 
Keith Ansell-Pearson, na coleção “Cambridge Texts in the History of Political Thought”, nos alerta que essa obra, escrita em 1887, é considerada por muitos comentadores como uma das obras mais sistemáticas de Nietzsche, seja no sentido da organização, seja no sentido de como o autor se aproximou das questões. O próprio Nietzsche, no Prólogo (parte 2) da "GM", admite que após uma parada ele escreveu essa obra retomando temas das obras anteriores, só que agora buscando uma maior precisão com relação a esses temas. Assim, ele espera que a "GM" seja uma obra mais madura, clara, forte e perfeita do que, por exemplo, a obra "Além do bem e do mal". 
Não obstante, Ansell-Pearson também nos informa que o próprio Nietzsche, numa carta para Peter Gast, considerava a "GM" como sendo uma espécie de "pequeno panfleto polêmico" que poderia ajudá-lo a vender mais cópias das obras anteriores. Essa avaliação do próprio Nietzsche nos leva a tentar compreender a obra “GM” à luz de outras obras. Como o nosso objetivo é tentar, sobretudo, extrair elementos de ética e política do pensamento nietzscheano, então escolhemos três outras obras que podem ajudar a aclarar certos conceitos. As obras escolhidas foram “A gaia ciência” de 1882, "Além do bem e do mal" de 1886 e "Ecce homo" de 1888; as duas últimas foram escolhidas por estarem mais próximas cronologicamente da obra “GM” e por comporem o período mais crítico e ácido do pensamento nietzscheano.
A “GM” pode ser considerada uma obra de maturidade, no sentido de que nessa obra se esclarece um pouco melhor alguns temas contidos em escritos anteriores, principalmente com relação à obra "Além do bem e do mal". Para início de conversa, a “GM” pode ser entendida como uma crítica virulenta a vários aspectos da modernidade, como a ciência moderna, a política moderna e a moralidade moderna. Para tanto, o texto se estrutura em torno da ideia de se tentar montar uma genealogia da moral, a qual explicaria por meio de instrumental histórico, filológico e psicológico como é que nasceu a moralidade e como ela foi se transformando até chegar na modernidade. 
O resultado dessa empreitada é uma desconcertante história sobre um passado moral voluntarista - a moral do senhor ou do nobre - que foi se transformando nas mãos da modernidade cristã e na moralidade tal como a conhecemos atualmente, referida como a moral de escravo ou de rebanho. Além de mostrar como surgiu a noção de bom e de mau com relação à moralidade dos nobres e como, pela transformação dessa noção pela moralidade de rebanho, surgiram os nossos preconceitos morais. 
Genealogia da Moral
             Capa da edição de 1887
A obra “GM” pretende ser antecipatória com relação aos eventuais desdobramentos da moralidade de rebanho. Para Nietzsche, o vir a ser humano terá que lidar com a morte de Deus e com o falecimento da cultura cristã. Ou seja, se faz necessário uma nova tresvaloração dos valores para preparar terreno para o homem redentor, ou o homem superior. Na visão de Marek Rautenberg, a percepção da tresvaloração dos valores está conectada à uma apreensão crítica da história da moral e a uma genealogia.
Numa carta direcionada ao colega Jacob Burckhardt, Nietzsche demonstra preocupação com o desenvolvimento e os desdobramentos da cultura europeia; para ele, a ideia de que essa cultura proporcionaria o melhoramento humano era algo extremamente duvidoso. Também, a “GM” é uma crítica ao entendimento da moralidade por meio da tradição filosófica e do conceito científico de vida; assim, percebem-se críticas à ética kantiana e ao darwinismo, as quais tentaremos apontar ao longo deste texto. 
O vitalismo nietzscheano possui fortes aspectos ligados à psicologia humana, manuseados hermenêuticamente, o que reforça o aspecto, diríamos, internalista contida na “GM”. Por fim, a naturalização dessa falsa moralidade, a moralidade moderna europeia, é estruturada uma linguagem moralista, retórica e maliciosamente falsa.
Na obra "Ecce Homo", o autor descreve a “GM” como sendo um trabalho construído por um psicólogo que pretende criar uma alternativa para o ascetismo vigente, por meio de uma transvaloração de todos os valores. A “GM” possui um Prólogo e três ensaios, traduzidos como dissertações por Paulo César de Souza. Essas dissertações são:

1) Primeira dissertação: "bom e mau", "bom e ruim";
2) Segunda dissertação: "culpa", "má consciência" e coisas afins e
3)  Terceira dissertação: “o que significam ideais ascéticos?”

sábado, 23 de março de 2019

HISTÓRIA E CIÊNCIAS SOCIAIS: RELAÇÕES E CONFLITOS (uma brevíssima introdução!)


Inicialmente, pode-se arriscar que as diferenças substantivas entre o trabalho do historiador e do cientista social  se encontram na origem, ou seja, no aparecimento da história e das assim chamadas ciências sociais, notadamente a Sociologia, a Antropologia, a Ciência Política e a Economia.
Busto de Heródoto
A História aparece na Grécia Antiga com Heródoto e Tucídides, no século quinto antes da era cristã.  Desse modo, a História aparece num mundo pré-cristão, num mundo pré-capitalista,  num mundo dominado pela cultura helênica, num mundo em que o pensamento filosófico começava a dar os seus primeiros passos.  Ou seja, um mundo bem diferente do nosso mundo contemporâneo,  profundamente marcado pelo pensamento medieval cristão e pelo cogito cartesiano na modernidade.
Sir Isaac Newton
Pintura de Lindsey Gray - acrílico sobre tela
 Utilizando a Sociologia como referência, as ciências sociais aparecem num mundo pós-cristão, capitalista, dominado pela cultura européia  e assombrado com a Revolução Científica, guiada por nomes como Copérnico, GALILEU GALILEI e Newton.  A Revolução Científica na modernidade influenciará não só as Ciências Naturais, essa revolução influenciará, por meio do método científico, as ciências sociais ainda nascentes. 
O sucesso da Física,  tomada na modernidade como exemplo de pensamento científico,  ressaltou o interesse por parte dos primeiros cientistas sociais com relação à ideia de universalidade e com relação ao método dedutivo.  Com relação à universalidade, não se quer afirmar que não existisse essa preocupação no mundo grego antigo.  Todavia, a ideia de universalidade do mundo antigo era certamente menor do que a do mundo moderno, pois, entre outros, o conhecimento do mundo era menor em vários sentidos.  Essa "menor universalidade" do mundo antigo pode ser percebida no sentido geográfico, no sentido cosmológico, no sentido do que poderíamos chamar de psicologia humana, entre outros. 
 Disso tudo, podemos ensaiar conceitos, ainda que superficiais, do que é a História e do que é a Sociologia; esses conceitos estão fincados no ambiente cultural em que nasceram essas disciplinas.  A Sociologia pode ser definida como o estudo da sociedade humana, com ênfase em generalizações sobre sua estrutura e desenvolvimento.  A História é mais bem definida como o estudo de sociedades humanas, ou culturas, no plural, destacando as diferenças entre elas e as mudanças ocorridas em cada uma com o passar do tempo. 
Pelas definições acima, não é forçoso inferir que a História possui um caráter mais particularista do que a Sociologia.  Todavia, esse profundo particularismo histórico mostra que a História e a Sociologia são coisas realmente diferentes, mas não necessariamente contraditórias.  Assim, talvez seja melhor tratar essas duas disciplinas como sendo complementares. 
O particularismo histórico está relacionado com a super-especialização do historiador em determinado lugar de determinada época.  Essa super-especialização pode levar o historiador a considerar o lugar pesquisado como sendo a sua "paróquia", ou seja, um lugar completamente único,  fechando os olhos para a ideia de que esse mesmo lugar  também é uma combinação única de elementos que, individualmente, possui paralelos em outros lugares.  Os teóricos sociais - agora, não só falando da Sociologia - demonstram esse espírito de paróquia em um sentido menos óbvio.  O paroquialismo dos cientistas sociais está mais relacionado com o tratamento que é dado ao tempo.  Os cientistas sociais possuem a mania de generalizar sobre a sociedade com base apenas na experiência contemporânea, ou discutem a mudança social sem levar em conta os processos históricos de longo prazo, os quais, muitas vezes, estão carregados de sutilezas e de detalhes que não interessam aos cientistas sociais. 
Por conta desses "paroquialismos", os historiadores costumam considerar, mais comumente nas fofocas de corredor, os cientistas sociais como pessoas que não possuem nenhum sentido de lugar e de tempo, pessoas que reduzem o indivíduo à categorias rígidas que desrespeitam as individualidades e, o pior de tudo, os cientistas sociais consideram sua atividade como sendo científica.  Os cientistas sociais, por sua vez, costumam considerar os historiadores como meros coletores de fatos, sem nenhuma capacidade de analisar as bases de dados exaustivamente pesquisadas  em prol de uma teoria mais ampla; ou seja, para os sociólogos, os historiadores possuem realmente uma mentalidade paroquial ou provinciana. 
 Além do "paroquialismo", o treinamento acadêmico também fornece combustível para os conflitos entre historiadores e cientistas sociais.  Os historiadores são treinados em dar atenção a detalhes concretos em detrimento de padrões gerais. Por outro lado, os cientistas sociais são treinados para observar ou formular regras gerais e, muitas vezes,  analisar e rejeitar as exceções.  Nesse sentido, os historiadores são muito mais abertos a casos excêntricos e às exceções do que os cientistas sociais. 
Na virada do século XIX para o século XX, a tensão entre historiadores e cientistas sociais pôde ser nitidamente constatada.  Nessa época, vários historiadores se afastaram não só da teoria social, como também se afastaram da História Social,  considerando esses objetos de estudo pouco dignos.  Esse afastamento tem um nome: Leopold von Ranke.  Importante afirmar que Ranke não rejeitava completamente a história social; todavia, seu trabalho como historiador se concentrava na figura do Estado, a qual só poderia ser devidamente abordado pela História Política.  Mas, por que a História Política ganhou força no final do século XIX?  A resposta para essa pergunta possui, pelo menos, dois aspectos. 
 Primeiro aspecto.  No século XIX, os governos europeus começaram a considerar a história como um instrumento para a promoção da unidade nacional, um instrumento para educar e formar cidadãos.  O tipo de história, suponha-se, que melhor se adequava para se fazer uma propaganda estatal é, naturalmente, a História do Estado, inserida na História Política.  Os vínculos entre os historiadores e o governo estatal eram bastante fortes, por exemplo, na Alemanha, onde Ranke nasceu. 
 Segundo aspecto.  A evolução histórica associada a Ranke era sobretudo uma revolução nas fontes e nos métodos, que deixavam de usar as histórias mais antigas ou "crônicas", substituindo-as pelos registros oficiais do governo.  Os historiadores começaram a trabalhar regularmente nos arquivos e elaboraram uma série de técnicas cada vez mais sofisticadas para avaliar a confiabilidade dos documentos que encontravam nos registros do governo.  A produção de uma "História Oficial" criou a sensação de que esse tipo de história é mais objetiva e científica do que a História feita anteriormente, sem esse carimbo de "documento oficial".  Essa sensação foi reforçada porque o aparecimento de institutos de pesquisa, de revistas especializadas e mesmo a estruturação dos departamentos de História nas universidades se deveu, em grande medida,  ao repasse de verbas governamentais que estimulavam o estudo da História Política. 
Nesse sentido, o trabalho dos historiadores sociais parecia não ser tão sério ou profissional se comparado com o trabalho dos historiadores da Escola Metódica Rankeana. Na verdade, a História Social era considerada uma espécie de sobra da verdadeira história: a História Política baseada no Estado. Assim, História Social e História Política sofreram uma separação artificialmente radical. 
Para exemplificar tal cisão, podemos citar o caso do historiador J.R. Green que publicou a obra "SHORT HISTORY OF THE ENGLISH PEOPLE" em 1874. Nessa obra, Green se concentrou na vida cotidiana em detrimento de batalhas e tratados. Seu ex-professor, chamado E. A. Freeman, comentou, segundo dizem, que se Green tivesse excluído toda a "tralha social", o livro "Breve história do povo inglês" poderia ter sido um bom livro de história da Inglaterra. (Citado em Burke, 2012, p. 22). 
Essa cisão também atingiu os historiadores alemães e franceses. No ambiente alemão, a obra de Jacob Burckhardt, "Cultura do Renascimento na Itália" de 1860, hoje uma obra clássica, não obteve sucesso na época da publicação; esse insucesso pode estar relacionado ao fato de que Burkhardt utilizou mais fontes literárias do que registros oficiais. No mesmo ano, o historiador francês Numa Denis Fustel de Coulanges escreveu a obra "A cidade antiga". Coulanges também nutria grande interesse pela História Social. Essa obra, hoje também considerada um clássico, foi melhor recebida pelos seus pares franceses, se compararmos com a recepção da obra de Burckhardt pelos seus pares alemães. Todavia, o espírito rankeano não permitiu enxergar devidamente o alcance e a profundidade da obra de Coulanges.
Pode-se afirmar que a revolução histórica de Ranke aumentou o conflito entre historiadores e cientistas sociais. A escola metódica colocou no centro dos seus interesses a História Política tradicional, isso tornou o trabalho dos historiadores, do final do século XIX e início do século XX, mais limitado e até, em certo sentido, a escolha de temas se mostrou mais engessada. Interessante notar que a justificativa de vários historiadores para a rejeição da história social cambiava em dois pólos diversos: os rankeanos rejeitaram a História Social porque ela não poderia ser estudada cientificamente; paradoxalmente, outros historiadores repudiaram a Sociologia, por exemplo, pelo motivo oposto, ou seja, a Sociologia era entendida como sendo científica demais, no sentido de que era uma matéria abstrata e genérica, não respeitadora das particularidades dos personagens e eventos históricos.
Diferentemente dos historiadores com relação aos estudos sociais, quatro importantes teóricos sociais utilizaram fartamente a história em seus trabalhos: Alex de Tocqueville, Karl Marx, Adam Smith e Gustav Schmoller.

A obra "O antigo regime e a evolução" (1856) de Alex de Tocqueville foi um trabalho seminal de história com base em documentos originais, assim como um marco em teoria social e política. "O capital" de Marx e "A riqueza das nações" de Smith são obras que representam uma contribuição pioneira para a história e a teoria econômica; dentre os assuntos dessas duas obras estão a discussão da legislação trabalhista, a mudança do artesanato para os produtos manufaturados, a expropriação da classe camponesa, o aparecimento da burguesia, entre outros. Embora seja pouco conhecido no Brasil, Gustav Schmoller (1838 - 1917) foi um dos pioneiros na tentativa de unir História com o pensamento econômico. O autor alemão foi uma importante figura da assim chamada Escola Histórica de Economia Política; ele é mais conhecido como historiador do que como economista.
Esses quatro autores desenvolveram trabalhos relativamente raros em suas épocas. Eles combinaram teoria social com o interesse pelos detalhes das situações históricas concretas. Na segunda metade do século XIX, o mais comum era a preocupação com as tendências duradouras ou com o que pode ser chamado de "evolução social". 
Para entender o que significa essa evolução social, é necessário remontar esquematicamente o pensamento do francês  Auguste Comte. Para Comte, a verdadeira teoria social, ou Sociologia, não deveria se preocupar com os nomes dos indivíduos e nem com os nomes dos povos. Claramente, essa concepção está atrelada a uma Filosofia da História, no sentido em que o passado poderia ser estudado na forma de estágios que obedeceriam a certas leis da evolução histórica. No caso da Filosofia da História de Comte, essas leis apontariam para três eras: a era da religião, a era da metafísica e, finalmente, a era da ciência. O pensamento comteano influenciou o "método comparativo" que era considerado histórico, no sentido de colocar todas as sociedades em uma mesma escala evolucionária.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BURKE, Peter. História e teoria social. 3a ed. São Paulo: Editora Unesp, 2012.