quarta-feira, 26 de junho de 2019

A ESCOLA METÓDICA RANKEANA E O POSITIVISMO - PARTE I


A ESCOLA METÓDICA RANKEANA E O POSITIVISMO - PARTE I


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Resolvi dividir a postagem atual em duas partes por três motivos: 
- deixar a postagem mais "enxuta", visando não espantar tanto quem se desanima rapidamente com textos mais longos; 
- a "Sexta Exigência" exige um maior esforço, digamos, filosófico e creio que uma sensibilidade histórica um pouco mais apurada. Por conta desses, a Sexta Exigência demandou um texto maior; 
- dar mais tempo para eu pensar sobre uma próxima postagem que, provavelmente, será ainda sobre Filosofia da História. 

INTRODUÇÃO

Leopold von Ranke (1795 - 1886)
Pode-se afirmar que a Escola Metódica Rankeana se baseou no que foi estabelecido no texto "O CONCEITO DE HISTÓRIA UNIVERSAL"[1] de Leopold von Ranke, escrito em 1831.  Nesse texto, Ranke estabelece o modo de como o historiador deveria se comportar diante do seu objeto de pesquisa.  Para tanto, o historiador alemão  estabeleceu não só princípios formais: como o uso de uma metodologia e de normas;  Ranke também se preocupou com princípios morais e até mesmo estéticos que deveriam nortear o trabalho do historiador. 
O texto "O conceito de história universal" [2] mostra claramente seis exigências que deveriam nortear a pesquisa histórica.  Todavia, além dessas seis exigências há, também, duas espécies de princípios que norteiam, estruturam e fundamentam essas exigências.  O primeiro princípio é de que a pesquisa histórica tanto será melhor quanto mais equilibrada for a relação entre os elementos concretos e os elementos abstratos que cercam o fenômeno histórico.  O segundo princípio parte da ideia controversa de que a História é uma arte.  Pedagogicamente, é mais frutífero explicar o primeiro princípio antes de mostrar as seis exigências estabelecidas por Ranke para a pesquisa histórica;  depois de apresentadas as exigências, fica mais simples entender o porquê de Ranke considerar a História como sendo uma arte. [3]
A partir do primeiro princípio, há a rejeição da ideia de que a pesquisa histórica deva voltar-se somente para a busca de algum princípio abstrato mais elevado e que supostamente subsistiria ao fenômeno histórico,  o qual está baseado na concretude da documentação.  O estabelecimento de algum princípio abstrato na pesquisa histórica incorreria em dois problemas:  o perigo de se transformar a História numa Filosofia da História a la Hegel [4], contaminada com elementos teleológicos  e de deixar o discurso histórico totalmente à mercê das especulações do historiador, o que poderia cair numa espécie de ficção.  Ranke sempre insiste que o historiador deve dedicar seus esforços àquilo que é concreto, em outras palavras, às fontes documentais oficiais, na visão dele. Hegel (1770 - 1831)

Com o primeiro princípio, ou o princípio do equilíbrio na cabeça, pode-se agora passar para as seis exigências da pesquisa histórica estabelecidas por Ranke. 

PRIMEIRA EXIGÊNCIA 
O historiador deve amar a verdade. Na medida em que o historiador reconhece a importância de determinado evento histórico, seja ele mais ligado a um acontecimento ou a um indivíduo, o historiador adquire uma consideração elevada por aquilo que aconteceu, se passou, se manifestou. Esse amor leva fortemente em conta o princípio do equilíbrio, pois o historiador deve equilibrar os elementos objetivos - por exemplo, o "quando" e o "onde" - com a sua imaginação. Todavia, o uso da imaginação sem amarras trabalha contra a verdade histórica, pois somente o uso da imaginação acaba por reconhecer apenas o reflexo das teorias e das idiossincrasias do historiador. Somente o uso da imaginação faz com que a História caia numa espécie de ficção.

SEGUNDA EXIGÊNCIA 
O historiador deve fazer uma investigação documental pormenorizada e aprofundada. Ranke separa essa investigação em dois níveis. No primeiro nível, o historiador deve se dedicar ao fato histórico, ou seja, ele deve ser capaz de explicar as condições de aparecimento deste fato e o seu contexto. No segundo nível, o historiador deve ser capaz de perceber a formação espiritual do fato histórico. Essa percepção se baseia na harmonia das leis que atuariam no espírito do historiador e também por meio do objeto que é analisado. Para Ranke, a alma coletiva baseia-se na harmonia do indivíduo. O entendimento dessa alma coletiva tanto será melhor quanto mais o historiador praticar a imparcialidade.
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TERCEIRA EXIGÊNCIA 
O historiador deve ter um interesse universal. Ranke critica os historiadores que possuem interesses parciais ou específicos, como, por exemplo, historiadores que só pesquisam as instituições  burguesas, historiadores que pesquisam apenas os avanços da ciência ou das realizações artísticas, ou mesmo aqueles que só se interessam por História Política. Para o historiador alemão, todos os campos da história estão na verdade essencialmente interligados. Saber perceber como a religião pode influenciar a política, por exemplo, faz parte dessa sensibilidade universal que o historiador deve possuir. A base dessa universalidade está no treinamento de imparcialidade do historiador. A imparcialidade favorece o entendimento da alma coletiva. Nesse sentido, a imparcialidade rankeana não significa falta de interesse, ela significa um interesse no conhecimento puro e universal, o qual não é turvado por opiniões preconcebidas ou por demais provincianas. 

QUARTA EXIGÊNCIA 
Os eventos históricos possuem uma fundamentação baseada no nexo causal. O nexo causal está relacionado a duas outras ideias: eventos simultâneos se influenciam mutuamente e o evento histórico precedente condiciona o evento posterior. Assim, há uma relação íntima de causa e efeito. Para Ranke, estudar a História por meio de relações de causa e efeito denomina-se pragmática.
Ranke critica a pragmática moderna por ela assentar as causas históricas em basicamente dois desejos humanos: o egoísmo e a ambição de poder. Ele nega que esses desejos sejam as únicas causas dos acontecimentos humanos. 
A pragmática rankeana está baseada na documentação de informações verdadeiras, as quais mostrarão as verdadeiras razões que causaram determinado evento histórico. Quanto mais documentada, exata, produtiva a investigação, mais livremente a arte do historiador é capaz de se movimentar. Nesse sentido, a teoria rankeana faz uma relação estreita entre documento e verdade, a qual serve como fundamento para a pesquisa histórica. O pragmatismo rankeano é documental.

QUINTA EXIGÊNCIA 
O historiador deve exercer o apartidarismo. O apartidarismo está relacionado, entre outros, com a ideia de que o estudo da história universal possui, digamos assim, dois senhores: o senhor do presente e o senhor do passado. Ranke reconhece que é muito difícil para o historiador se manter apartidário, no sentido de tentar ver ou perceber a verdade das disputas de um ponto de vista equidistante entre duas opiniões opostas, ainda mais que o historiador está fortemente influenciado pelo espírito da sua época. Ranke acredita que o bom historiador seja capaz de perceber a essência dos elementos em conflito, ou seja, que o historiador é capaz de desconsiderar valores próprios quando esses não são úteis para a explicação histórica.


REFERÊNCIAS E RECOMENDAÇÕES

[1] Com relação a essa obra, atualmente não há traduções em Português minimamente acessíveis. Por isso, recomendo a edição com a tradução para a língua inglesa. 

[2] Para uma perspectiva mais contextualizada da obra de Ranke, recomendo a obra "Teoria da história Vol. II" de autoria de  José D'Assunção de Barros. Importante ressaltar que comumente Ranke é percebido como um historiador positivista. Mas essa aproximação com os ideais positivistas merece muitos cuidados. 
BARROS, José D'Assunção de. Teoria da história Vol. II: Os primeiros paradigmas: positivismo e historicismo. Editora Vozes, 2014. 

[3] Outra obra interessante de consulta do pensamento de Ranke, é o livro do professor  Estevão de Rezende Martins. O professor Estevão Martins foi meu professor, entre outros, de Teoria da História na UnB. 
MARTINS, E.R.História pensada: teoria e método da historiografia europeia do século XIX.  São Paulo: Editora Contexto, 2015. 

[4] Não há como falar de Filosofia da História sem citar a obra "Filosofia da História" do filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel. 
HEGEL, Georg W.F. Filosofia da História. Brasília: Editora UnB, 1996.