sábado, 23 de março de 2019

HISTÓRIA E CIÊNCIAS SOCIAIS: RELAÇÕES E CONFLITOS (uma brevíssima introdução!)


Inicialmente, pode-se arriscar que as diferenças substantivas entre o trabalho do historiador e do cientista social  se encontram na origem, ou seja, no aparecimento da história e das assim chamadas ciências sociais, notadamente a Sociologia, a Antropologia, a Ciência Política e a Economia.
Busto de Heródoto
A História aparece na Grécia Antiga com Heródoto e Tucídides, no século quinto antes da era cristã.  Desse modo, a História aparece num mundo pré-cristão, num mundo pré-capitalista,  num mundo dominado pela cultura helênica, num mundo em que o pensamento filosófico começava a dar os seus primeiros passos.  Ou seja, um mundo bem diferente do nosso mundo contemporâneo,  profundamente marcado pelo pensamento medieval cristão e pelo cogito cartesiano na modernidade.
Sir Isaac Newton
Pintura de Lindsey Gray - acrílico sobre tela
 Utilizando a Sociologia como referência, as ciências sociais aparecem num mundo pós-cristão, capitalista, dominado pela cultura européia  e assombrado com a Revolução Científica, guiada por nomes como Copérnico, GALILEU GALILEI e Newton.  A Revolução Científica na modernidade influenciará não só as Ciências Naturais, essa revolução influenciará, por meio do método científico, as ciências sociais ainda nascentes. 
O sucesso da Física,  tomada na modernidade como exemplo de pensamento científico,  ressaltou o interesse por parte dos primeiros cientistas sociais com relação à ideia de universalidade e com relação ao método dedutivo.  Com relação à universalidade, não se quer afirmar que não existisse essa preocupação no mundo grego antigo.  Todavia, a ideia de universalidade do mundo antigo era certamente menor do que a do mundo moderno, pois, entre outros, o conhecimento do mundo era menor em vários sentidos.  Essa "menor universalidade" do mundo antigo pode ser percebida no sentido geográfico, no sentido cosmológico, no sentido do que poderíamos chamar de psicologia humana, entre outros. 
 Disso tudo, podemos ensaiar conceitos, ainda que superficiais, do que é a História e do que é a Sociologia; esses conceitos estão fincados no ambiente cultural em que nasceram essas disciplinas.  A Sociologia pode ser definida como o estudo da sociedade humana, com ênfase em generalizações sobre sua estrutura e desenvolvimento.  A História é mais bem definida como o estudo de sociedades humanas, ou culturas, no plural, destacando as diferenças entre elas e as mudanças ocorridas em cada uma com o passar do tempo. 
Pelas definições acima, não é forçoso inferir que a História possui um caráter mais particularista do que a Sociologia.  Todavia, esse profundo particularismo histórico mostra que a História e a Sociologia são coisas realmente diferentes, mas não necessariamente contraditórias.  Assim, talvez seja melhor tratar essas duas disciplinas como sendo complementares. 
O particularismo histórico está relacionado com a super-especialização do historiador em determinado lugar de determinada época.  Essa super-especialização pode levar o historiador a considerar o lugar pesquisado como sendo a sua "paróquia", ou seja, um lugar completamente único,  fechando os olhos para a ideia de que esse mesmo lugar  também é uma combinação única de elementos que, individualmente, possui paralelos em outros lugares.  Os teóricos sociais - agora, não só falando da Sociologia - demonstram esse espírito de paróquia em um sentido menos óbvio.  O paroquialismo dos cientistas sociais está mais relacionado com o tratamento que é dado ao tempo.  Os cientistas sociais possuem a mania de generalizar sobre a sociedade com base apenas na experiência contemporânea, ou discutem a mudança social sem levar em conta os processos históricos de longo prazo, os quais, muitas vezes, estão carregados de sutilezas e de detalhes que não interessam aos cientistas sociais. 
Por conta desses "paroquialismos", os historiadores costumam considerar, mais comumente nas fofocas de corredor, os cientistas sociais como pessoas que não possuem nenhum sentido de lugar e de tempo, pessoas que reduzem o indivíduo à categorias rígidas que desrespeitam as individualidades e, o pior de tudo, os cientistas sociais consideram sua atividade como sendo científica.  Os cientistas sociais, por sua vez, costumam considerar os historiadores como meros coletores de fatos, sem nenhuma capacidade de analisar as bases de dados exaustivamente pesquisadas  em prol de uma teoria mais ampla; ou seja, para os sociólogos, os historiadores possuem realmente uma mentalidade paroquial ou provinciana. 
 Além do "paroquialismo", o treinamento acadêmico também fornece combustível para os conflitos entre historiadores e cientistas sociais.  Os historiadores são treinados em dar atenção a detalhes concretos em detrimento de padrões gerais. Por outro lado, os cientistas sociais são treinados para observar ou formular regras gerais e, muitas vezes,  analisar e rejeitar as exceções.  Nesse sentido, os historiadores são muito mais abertos a casos excêntricos e às exceções do que os cientistas sociais. 
Na virada do século XIX para o século XX, a tensão entre historiadores e cientistas sociais pôde ser nitidamente constatada.  Nessa época, vários historiadores se afastaram não só da teoria social, como também se afastaram da História Social,  considerando esses objetos de estudo pouco dignos.  Esse afastamento tem um nome: Leopold von Ranke.  Importante afirmar que Ranke não rejeitava completamente a história social; todavia, seu trabalho como historiador se concentrava na figura do Estado, a qual só poderia ser devidamente abordado pela História Política.  Mas, por que a História Política ganhou força no final do século XIX?  A resposta para essa pergunta possui, pelo menos, dois aspectos. 
 Primeiro aspecto.  No século XIX, os governos europeus começaram a considerar a história como um instrumento para a promoção da unidade nacional, um instrumento para educar e formar cidadãos.  O tipo de história, suponha-se, que melhor se adequava para se fazer uma propaganda estatal é, naturalmente, a História do Estado, inserida na História Política.  Os vínculos entre os historiadores e o governo estatal eram bastante fortes, por exemplo, na Alemanha, onde Ranke nasceu. 
 Segundo aspecto.  A evolução histórica associada a Ranke era sobretudo uma revolução nas fontes e nos métodos, que deixavam de usar as histórias mais antigas ou "crônicas", substituindo-as pelos registros oficiais do governo.  Os historiadores começaram a trabalhar regularmente nos arquivos e elaboraram uma série de técnicas cada vez mais sofisticadas para avaliar a confiabilidade dos documentos que encontravam nos registros do governo.  A produção de uma "História Oficial" criou a sensação de que esse tipo de história é mais objetiva e científica do que a História feita anteriormente, sem esse carimbo de "documento oficial".  Essa sensação foi reforçada porque o aparecimento de institutos de pesquisa, de revistas especializadas e mesmo a estruturação dos departamentos de História nas universidades se deveu, em grande medida,  ao repasse de verbas governamentais que estimulavam o estudo da História Política. 
Nesse sentido, o trabalho dos historiadores sociais parecia não ser tão sério ou profissional se comparado com o trabalho dos historiadores da Escola Metódica Rankeana. Na verdade, a História Social era considerada uma espécie de sobra da verdadeira história: a História Política baseada no Estado. Assim, História Social e História Política sofreram uma separação artificialmente radical. 
Para exemplificar tal cisão, podemos citar o caso do historiador J.R. Green que publicou a obra "SHORT HISTORY OF THE ENGLISH PEOPLE" em 1874. Nessa obra, Green se concentrou na vida cotidiana em detrimento de batalhas e tratados. Seu ex-professor, chamado E. A. Freeman, comentou, segundo dizem, que se Green tivesse excluído toda a "tralha social", o livro "Breve história do povo inglês" poderia ter sido um bom livro de história da Inglaterra. (Citado em Burke, 2012, p. 22). 
Essa cisão também atingiu os historiadores alemães e franceses. No ambiente alemão, a obra de Jacob Burckhardt, "Cultura do Renascimento na Itália" de 1860, hoje uma obra clássica, não obteve sucesso na época da publicação; esse insucesso pode estar relacionado ao fato de que Burkhardt utilizou mais fontes literárias do que registros oficiais. No mesmo ano, o historiador francês Numa Denis Fustel de Coulanges escreveu a obra "A cidade antiga". Coulanges também nutria grande interesse pela História Social. Essa obra, hoje também considerada um clássico, foi melhor recebida pelos seus pares franceses, se compararmos com a recepção da obra de Burckhardt pelos seus pares alemães. Todavia, o espírito rankeano não permitiu enxergar devidamente o alcance e a profundidade da obra de Coulanges.
Pode-se afirmar que a revolução histórica de Ranke aumentou o conflito entre historiadores e cientistas sociais. A escola metódica colocou no centro dos seus interesses a História Política tradicional, isso tornou o trabalho dos historiadores, do final do século XIX e início do século XX, mais limitado e até, em certo sentido, a escolha de temas se mostrou mais engessada. Interessante notar que a justificativa de vários historiadores para a rejeição da história social cambiava em dois pólos diversos: os rankeanos rejeitaram a História Social porque ela não poderia ser estudada cientificamente; paradoxalmente, outros historiadores repudiaram a Sociologia, por exemplo, pelo motivo oposto, ou seja, a Sociologia era entendida como sendo científica demais, no sentido de que era uma matéria abstrata e genérica, não respeitadora das particularidades dos personagens e eventos históricos.
Diferentemente dos historiadores com relação aos estudos sociais, quatro importantes teóricos sociais utilizaram fartamente a história em seus trabalhos: Alex de Tocqueville, Karl Marx, Adam Smith e Gustav Schmoller.

A obra "O antigo regime e a evolução" (1856) de Alex de Tocqueville foi um trabalho seminal de história com base em documentos originais, assim como um marco em teoria social e política. "O capital" de Marx e "A riqueza das nações" de Smith são obras que representam uma contribuição pioneira para a história e a teoria econômica; dentre os assuntos dessas duas obras estão a discussão da legislação trabalhista, a mudança do artesanato para os produtos manufaturados, a expropriação da classe camponesa, o aparecimento da burguesia, entre outros. Embora seja pouco conhecido no Brasil, Gustav Schmoller (1838 - 1917) foi um dos pioneiros na tentativa de unir História com o pensamento econômico. O autor alemão foi uma importante figura da assim chamada Escola Histórica de Economia Política; ele é mais conhecido como historiador do que como economista.
Esses quatro autores desenvolveram trabalhos relativamente raros em suas épocas. Eles combinaram teoria social com o interesse pelos detalhes das situações históricas concretas. Na segunda metade do século XIX, o mais comum era a preocupação com as tendências duradouras ou com o que pode ser chamado de "evolução social". 
Para entender o que significa essa evolução social, é necessário remontar esquematicamente o pensamento do francês  Auguste Comte. Para Comte, a verdadeira teoria social, ou Sociologia, não deveria se preocupar com os nomes dos indivíduos e nem com os nomes dos povos. Claramente, essa concepção está atrelada a uma Filosofia da História, no sentido em que o passado poderia ser estudado na forma de estágios que obedeceriam a certas leis da evolução histórica. No caso da Filosofia da História de Comte, essas leis apontariam para três eras: a era da religião, a era da metafísica e, finalmente, a era da ciência. O pensamento comteano influenciou o "método comparativo" que era considerado histórico, no sentido de colocar todas as sociedades em uma mesma escala evolucionária.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BURKE, Peter. História e teoria social. 3a ed. São Paulo: Editora Unesp, 2012. 



terça-feira, 12 de março de 2019

O PROBLEMA DO MAL EM SANTO AGOSTINHO



Imagem de Santo Agostinho
Afresco de Sandro Botticelli 
Ano: 1480
INTRODUÇÃO

O problema do mal em Agostinho esbarra em basicamente três  problemas:  o problema metafísico, o problema da liberdade/ livre arbítrio e em questões de teologia.  Os dois primeiros problemas merecerão mais atenção, ou seja evitaremos ao máximo tocar em questões teológicas. 
 Para começar, podemos entender que o problema do mal começa com ideia de Deus.  Deus, na tradição cristã, é o ser perfeito e criador de todas as coisas.  Ele é o Ser enquanto Ser e é aquele que atingiu todas as virtudes de forma excelente.  Se assim é, admitir que o homem pratica o mal é admitir, em certo sentido, a imperfeição da realidade.  Desse modo, como é possível conciliar a perfeição do criador com imperfeição  da criação?
 Para solucionar esse problema, Agostinho inicia com uma análise metafísica.  Ou seja, em vez de começar com uma análise da vontade humana,  o santo da igreja católica inicia sua investigação  com a análise do "ser enquanto ser" - Deus.
 Na tradição cristã, Deus é o soberano bem, ou seja, ele preenche todos os espaços daquilo que pode ser considerado o verdadeiro bem.  Por conta disso, Deus é imutável porque ele não precisa se inclinar ou mudar sua natureza para tentar alcançar determinado bem.  Todavia, parece óbvio que as criaturas criadas por Deus não possuem a marca da perfeição. 
 Por que isso acontece? 
A solução agostiniana começa com a ideia de que a criação foi feita a partir do nada, ou seja, parte da criação possui elementos do "ser enquanto ser", ou da perfeição de Deus, e parte possui elementos do não ser, ou seja, do nada. Assim, o ser humano,  criado a partir do nada, participa tanto do ser quanto do nada. Desse modo, possuímos uma espécie de falha original que, por sua vez, proporciona a mutabilidade humana. Essa resposta caminha para a ideia de que toda natureza, inclusive a humana, é boa por definição, pois qualquer que seja a substância que consideremos, Deus lhe conferiu a medida, a forma e a ordem (modus, species, ordo). Essas três perfeições conferem maior ou menor bem de acordo com a medida dada por Deus. A ideia é de que toda natureza, inclusive a humana, é boa por definição pois qualquer que seja a substância que consideremos, Deus lhe conferiu a medida, a forma e a ordem.
Nesse sentido, o mal só pode ser a corrupção de uma das perfeições na natureza. Não corrompida, a natureza seria toda medida, forma e ordem; ou seja, a natureza seria boa. Todavia, mesmo corrompida, a natureza permanece boa enquanto algo criado por Deus e é má na medida em que é corrompida pela vontade humana, em função da falta de ser dessa mesma natureza. Assim, o mal é uma privação. Somos privados de um bem que deveríamos possuir. O mal, nesse sentido, é a privação do bem.
Por conta dessa conclusão, Agostinho era contrário à doutrina dos maniqueus ou o MANIQUEÍSMO que consideravam o mal como sendo um ser. Como visto, para Agostinho, o mal é, na verdade, pura ausência de ser, ou seja, o mal é um puro nada. O mal nem sequer pode ser concebido fora do ser, que é um bem. Portanto, a relação do bem com o mal segue a seguinte lógica: há um Ser que é bom, somente privado de algo é que esse Ser abre a possibilidade para o mal, como no caso da vontade humana. O não-ser não tem defeitos; prova disso é que quando falamos do mal, supomos implicitamente a presença de um bem que, não sendo tudo o que deveria ser, é, por isso, uma coisa má. Desse modo, o mal não é somente uma privação, é uma privação que mora ou reside num bem.
Uma vez colocados esses princípios, é possível explicar a presença do mal no mundo. Deus criou todas as coisas a partir do nada. Esse ato de criar faz com que a presença do não-ser seja inevitável, pois criar significa tirar algo do nada ou do não-ser. O que vem do nada é corruptível e, por conta disso, o homem nem sempre age de forma boa. Essa resposta parece eximir Deus da presença do mal no mundo. Mas ela gera uma outra indagação mais complicada: não seria melhor para Deus nada criar, ao invés de permitir a possibilidade do mal?
Para responder a essa questão complicada, é necessário entender que a resposta metafísica mais geral é um primeiro passo para se tentar responder ao problema do mal. Nesse momento, faz-se necessário desdobrar o problema do mal em dois outros aspectos para melhor apreciar a resposta agostiniana. Assim, os dois aspectos do problema do mal tratados por Agostinho se dividem no mal natural e no mal voluntário ou mal moral. O mal voluntário é o mais complicado de ser tratado, porque envolve de forma mais complexa relações entre Metafísica, liberdade e teologia. Desse modo, é melhor focar no mal natural, cuja resposta agostiniana parece ser mais simples.
A realidade, na medida que possui algo do "ser enquanto ser", só pode ser considerada como sendo algo bom. Todavia, todos sabemos que o mundo natural segue a seguinte lei: as coisas nascem, corrompem-se e morrem. O universo é o teatro das destruições contínuas que, no caso dos seres humanos, costumam ser acompanhadas por imensos sofrimentos, tristezas e lutos. Todavia, para Agostinho essa é uma percepção superficial da realidade. Obviamente, a decadência e a fragilidade corpórea humana é um fato que causa um inevitável sofrimento. Todavia, os sofrimentos pontuais são minúsculos se comparados com a obra divina percebida como um todo. Assim, se há morte e sofrimento, também há nascimento e contentamento com a beleza da vida. Deus arrumou a realidade física de modo que as coisas fracas deem lugar às coisas fortes, que as coisas menos fortes deem lugar às mais fortes. Essa sucessão é bela na sua estrutura geral, pois o desaparecimento e a recolocação das coisas engendra uma beleza de um gênero distinto a qual não pode ser percebida pontualmente. Trata-se, por assim dizer, de uma beleza que só pode ser percebida num longo período de tempo. Desse modo, aquilo que morre ou que muda não desonra e nem enfeia o equilíbrio do universo, a obra de Deus.

O LIVRE-ARBÍTRIO

Como afirmado, o problema do mal se torna mais complicado quando se tenta lidar com o mal moral, relacionado ao livre-arbítrio humano. O problema aparece da seguinte forma: se as ações dos homens não são sempre o que deveriam ser, a vontade humana é a responsável. O homem escolhe livremente suas decisões e é por ser livre que é capaz de fazer o mal. Eis o problema: se Deus é perfeito, como ele pôde dar-nos o livre-arbítrio, uma vontade capaz de fazer o mal?
Numa primeira aproximação, não parece forçoso aceitar a ideia de que há muitas coisas boas, mas das quais podemos fazer mau uso. O vinho, por exemplo, pode servir de deleites sensoriais dos mais variados, mas pode também trazer embriaguez e vício. No entanto, isso não é motivo para afirmar que o vinho é algo mal em si mesmo e nem que Deus não deveria tê-lo criado, pois o vinho é um bem tomado em si mesmo.
Igualmente, a vontade, tomada em si mesma, é algo bom, pois sem a vontade não poderíamos alcançar a beatitude. Desse modo, deve-se reprovar quem faz mal uso da vontade e não quem a deu para o ser humano. Todavia a pergunta persiste: 
Por que Deus nos deu um dom tão perigoso? 
É verdade que esse dom pode nos conduzir à verdadeira felicidade de acordo com os mandamentos bíblicos, mas há boas chances dela conduzir ao pecado.
A liberdade é uma condição necessária para nos levar à beatitude, o maior bem humano. Em si, a vontade livre não pode ser um mal. Nesse sentido, a existência dos pecadores contribui para a perfeição do universo, mas eles não contribuem como pecadores; eles contribuem como vontades livres e capazes ou não de pecar. Importante ressaltar que a vontade livre não é um bem absoluto como, por exemplo, a justiça o é. A justiça é um bem absoluto porque o mal uso dela destrói o seu significado, ou seja, o mau uso da justiça acarreta em injustiça a qual não guarda elementos do que seja considerado o justo. Assim, a liberdade é um tipo de bem mediano, cuja natureza é boa, mas cujo efeito pode ser mau ou bom segundo a maneira pela qual o homem o usa.
Outro aspecto importante, na visão agostiniana, a liberdade assim como a razão são mestras de si mesmas, ou seja, a vontade livre dispõe livremente acerca do seu objeto de escolha. Logo, só por meio da liberdade depende o mau uso do bem que ela é. Outro fator que mostra que a liberdade é um bem mediano é a sua individualização. Um homem não pode ser feliz pela beatitude de outrem; do mesmo modo que não pode ser prudente, justo ou forte pela prudência, pela justiça ou força de outro homem. Por isso, a vontade é pessoal e livre, um bem médio em si mesmo. Esse bem permanece livre para se voltar ao bem supremo e alcançar a beatitude, ou para se afastar do bem supremo e gozar das coisas inferiores, atitude essa que consiste o mal moral e o pecado.
Disso tudo, ainda pode ser feita uma última pergunta: 
Como é possível que a vontade tenha optado pelo pecado?
Para responder a essa indagação, é necessário remontar alguns aspectos que foram elaborados até aqui. Deus é a causa de tudo; sendo assim, ele é a causa do movimento de aversão pelo qual o livre-arbítrio se desvia do bem supremo para se apegar aos bens inferiores, e, uma vez que esse desvio cai no pecado, segue-se que Deus é a causa do pecado. Obviamente, essa seria uma conclusão intolerável para santo Agostinho.
Demônio gritando
O Mal constantemente é representado como sendo um Demônio.
Nesse sentido, o Demônio é percebido como a fonte de todo o mal. 
Todavia, esse entendimento não é bem aceito pela Teologia agostiniana.
 
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Mas, se esse movimento não vem de Deus, de onde vem a inclinação para o pecado?
A resposta de Agostinho nesse ponto é frustrante. Para o santo da Igreja Católica, a única resposta sincera que podemos oferecer a essa questão é de que nada sabemos. Nada podemos saber porque não é possível conhecer o que seja o nada ou o não-ser.
A partir dessa resposta, cabe uma última pergunta: qual o sentido dessa resposta?
Para começar a responder essa última indagação, é necessário permanecer nos trilhos metafísicos inicialmente traçados por Agostinho. Seguindo isso, podemos afirmar que todo bem vem de Deus; toda natureza é um certo bem; logo, toda natureza vem de Deus. Assim, enquanto existir um rudimento mínimo que seja do Ser, mesmo que corrompido, permanece nesse rudimento algo de Deus. Sem dúvida, esse rudimento pode ser conduzido à sua perfeição. Como afirmado, qualquer esboço de Ser carrega a marca do criador, a supressão total do bem equivale à total supressão do Ser.
Nesse sentido, torna-se contraditório imaginar que Deus seja a origem de aversão ao verdadeiro bem. Indubitavelmente, Deus criou a vontade mestra de si mesma, capaz tanto de perseguir a beatitude quanto o pecado. A vontade humana “podendo” se desligar de Deus, ela não “deveria” seguir esse movimento. Nesse sentido, a queda do homem não é uma queda natural, como a de uma pedra que cai, mas a queda causada por uma vontade livre que se deixa abandonar do verdadeiro bem. Assim, o movimento da queda original advém do nada, ou seja, do não-ser.
Mas, metafisicamente falando, se o pecado é o nada, como ele teria uma causa eficiente?
Como já exposto, só podemos perceber a deficiência do ser, não podemos buscar a causa de uma falta ou de uma falta de ser. Buscar isso seria o mesmo que tentar achar algo, som e luz, no silêncio das trevas.
Por fim, qual o sentido cristão para tudo isso?
O mal ou o pecado pode ser considerado tão somente uma falta de amor para com Deus. Por sermos criados a partir do nada, somos mutáveis e, consequentemente, imperfeitos. Essa imperfeição faz com que nos desviemos do amor para com Deus e, desse modo, pequemos buscando, por exemplo, prazeres sensíveis. Desse modo, é culpa do homem introduzir em si e no universo a desordem inicial do pecado, algo que pode ser bem percebido no pecado original.




segunda-feira, 4 de março de 2019

A ESCOLA DOS ANNALES - UMA BREVÍSSIMA HISTÓRIA ATÉ A TERCEIRA GERAÇÃO


A ESCOLA DOS ANNALES

Lucien Febvre
Lucien Febvre e Marc Bloch foram os líderes do que pode ser denominado Revolução Francesa da Historiografia. Essa revolução – ou evolução - se deu por meio da revista inicialmente intitulada "Annales de d'histoire économique et sociale", criada em 1928/1929, tendo como modelo os "Annales de Géographie" de Vidal de la Blache. Notadamente, os Annales desde a sua criação passaram por algumas gerações. Peter Burke, na obra "a Escola dos Annales 1929-1989", consegue descrever e sistematizar três gerações, até o ano de 1989. Apesar de ser possível apontar uma quarta geração pós 1989, tentaremos descrever e, na medida do possível, analisar as três gerações apontadas por Burke. Também, para melhor entender a formação dos Annales, se faz necessário entender os seus antecedentes históricos, tendo em vista a longa duração.
Marc Bloch
acervo de família
Desde o início da história, com Heródoto e Tucídides, a história tem sido escrita de várias maneiras. Todavia, a forma predominante de se fazer história, pelo menos até o início do século XX, foi o que poderíamos chamar de história política. Esse tipo de história era baseada nos grandes eventos e nos feitos de grandes homens, principalmente chefes militares, reis e mesmo figuras consideradas heróicas. 
No Iluminismo, temas sociais começaram a ganhar força e importância. Autores como Voltaire se preocupavam com o que poderíamos chamar de história da sociedade. 
Outro exemplo de descontentamento pode ser encontrado na obra "Declínio e queda do Império Romano" de Edward Gibbon, publicado em 1776.
Interessante notar que esse movimento de descontentamento sofreu um inesperado golpe, um golpe, poderíamos afirmar, não intencional. O sucesso da revolução científica na modernidade, liderada por nomes como Copérnico, Galileu Galilei e Isaac Newton, inspirou todas as áreas do conhecimento, influenciando inclusive a área de humanidades. O positivismo e a Escola Metódica de Ranke são exemplos dessa influência. O positivismo, principalmente, adotou o método científico como padrão de conhecimento. É notável, por exemplo, a influência do positivismo no nascimento da sociologia. O cientificismo dos positivistas inibiu consideravelmente a utilização da interpretação nos processos históricos, inibiu também as análises culturais. 
No século XIX, o nome de Ranke representou um grande reforço à história política. Importante ressaltar que os interesses de Ranke não se limitavam à história política, ele escreveu sobre a Reforma, a Contrarreforma e não rejeitou a história social, a história da arte ou da ciência. Todavia, Ranke passou a ideia de que a verdadeira história era a história científica, a qual é baseada na pesquisa exaustiva de documentos oficiais. Esse modo de enxergar a história fez com que os historiadores sócio-culturais parecessem meros diletantes que estavam no caminho errado. 
Certamente, as críticas voltadas para o positivismo rankeano são melhor direcionadas para os discípulos de Ranke. Para eles, a verdadeira história ou história científica tinha que ser baseada em dois elementos: numa metodologia centrada na pesquisa, busca e análise de documentos oficiais e, também, na pesquisa dos grandes eventos políticos, centrados, principalmente, nos grandes líderes. Pode-se afirmar que o radicalismo dos positivistas e dos rankeanos teve como reação o radicalismo do grupo dos Annales, descontentes com a história política centrada em fatos descarnados das dinâmicas sociais mais pulsantes e deixadas de lado pelos historiadores profissionais.
O movimento dos Annales, em sua primeira geração, teve dois líderes destacados: Lucien Febvre e Marc Bloch. Os dois historiadores franceses estavam profundamente descontentes com o positivismo histórico. Esse descontentamento se baseava nos temas históricos tradicionalmente abordados, centrados principalmente em questões políticas, e no entendimento corrente do que era um documento histórico. 
Por exemplo, um dos temas preferidos de Febvre é o que se pode chamar de geografia histórica. O interesse por esse tema veio de um antigo professor, chamado Vidal de la Blache. O nome de la Blache servirá de inspiração para membros de gerações posteriores da Escola dos Annales, notadamente Fernand Braudel. 
Para Febvre, há uma variedade de possíveis respostas aos desafios oferecidos por um meio ambiente qualquer. Para ele, não havia uma relação condicional de determinado ambiente e o tipo de modo de vida que deveria se acomodar a esse ambiente. Assim, Febvre se apoiava na geografia para explicar alguma condição histórica, mas isso não quer dizer que ele fosse um determinista geográfico. Muito provavelmente, o debate entre determinismo e liberdade humana não seja resolvido empiricamente. Na verdade, Febvre não está muito interessado nessa discussão de cunho mais filosófico. Mas ele oferece alguns exemplos pitorescos de como o ser humano é capaz de se posicionar de diferentes maneiras frente a um mesmo dado geográfico. Podemos citar um dos exemplos favoritos do historiador francês: um mesmo rio pode ser tratado como sendo uma barreira numa determinada sociedade, mas também pode ser tratado como um meio de transporte em outra sociedade. Assim, não é um rio que determina uma sociedade, mas é a coletividade, com sua maneira de viver, seu comportamento e suas atitudes que moldaram o modo de vida em determinado rio.
O outro fundador da Escola dos Annales, Marc Bloch, foi um importante medievalista. Bloch também se interessou pela geografia histórica. Aliado a esse interesse, Bloch lança o que se poderia chamar de história-problema. Para ele, o estudo geográfico depende fortemente da própria noção de região que se tem na cabeça, essa noção depende do problema que se quer resolver.
Ou seja, não se pode esperar que um jurista interessado no feudalismo, um economista interessado na evolução de preços nos tempos feudais e o historiador interessado nas noções de feudalismo  na Europa Ocidental tenham todos as mesmas noções de fronteiras geográficas. Por exemplo, o jurista pode afirmar que a lei romana foi amplamente praticada nas sociedades latinas, mas não saxônicas. Já o economista pode desconsiderar essas fronteiras para estudar o fenômeno inflacionário. O historiador, por sua vez, pode concluir que o feudalismo da Europa Ocidental é muitíssimo semelhante ao do sul e leste da Inglaterra, ou seja, há uma espécie de continuidade geográfica nessas regiões quando comparamos certos aspectos do feudalismo.
Marc Bloch morreu prematuramente durante a Segunda Grande Guerra. Febvre faleceu em 1956, mas deixou um discípulo que seria o nome mais importante da segunda geração dos Annales, Fernand Braudel (1902 - 1985). Semelhante aos fundadores dos Annales, Braudel nutre uma imensa preocupação com a história geográfica; sua mais famosa obra, na verdade uma tese terminada em 1949, "O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Philippe II", é rico na descrição de montanhas, campos, vales e das diversas paisagens que compõem o principal mar europeu. Todavia, uma de suas grandes contribuições é com relação à abordagem do tempo. 
Para entender a concepção braudeliana de tempo, é importante ter em mente que essa concepção é uma espécie de resposta às críticas que o etnólogo Lévi-Strauss fez à história nas décadas de 50 e 60 do século XX.
Para Lévi-Strauss, o historiador está preso a um plano empírico de observação, o que, consequentemente, o condena a não ser capaz de criar modelos. Assim, o historiador não é capaz de ter acesso às estruturas profundas da sociedade que, obviamente, são as que mais importam. Importante ressaltar que o etnólogo francês considera a etnologia e a história disciplinas próximas. A distinção entre estas duas disciplinas situa-se entre os limites de uma ciência empírica e os limites de uma ciência conceitual que, obviamente, é a etnologia. 
Ao que parece, as afirmações de Lévi-Strauss incomodaram profundamente Braudel. 
Desse incômodo, nasceu uma estratégia dividida em duas partes: a história seria uma espécie de ciência aglutinadora das ciências humanas e a história respeitaria profundamente o programa dessas ciências humanas. Assim, Braudel é partidário do livre intercâmbio das ideias e das pessoas entre as diversas ciências humanas, ou seja, ele defende a multidisciplinariedade e a interdisciplinariedade. Porém, o mais surpreendente é que ele vai se apropriar das conquistas da antropologia estrutural, tentando relacioná-las à matéria prima do historiador: o tempo.
Essa aproximação, por si só surpreendente, permitirá Braudel fundamentar de maneira mais clara um conceito que estava pairando nos Annales desde Marc Bloch, o conceito de tempo de longa duração. Desse modo, ele propõe reorganizar o conjunto das ciências sociais ao redor de um programa comum, que tenha como referente essencial a longa duração, a qual permitiria uma linguagem comum entre historiadores, sociólogos, antropólogos, geógrafos e outros cientistas sociais. 
Na obra "O Mediterrâneo", é apresentada a arquitetura do que seria a longa duração. Nesta obra, o tempo articula-se ao redor de três temporalidades: os acontecimentos, o tempo conjuntural/rotineiro e, por fim, a longa duração. Nessa abordagem, a esperança é perceber estágios diferentes da passagem do tempo e certas defasagens entre as temporalidades. Importante notar que essas três temporalidades não são independentes umas das outras, elas são solidárias.
Há, portanto, uma temporalidade global que reúne tudo num todo. Com esse movimento, Braudel consegue duas coisas importantes: primeiro, ele consegue mostrar os problemas acarretados pela noção de tempo múltipla e a-histórica adotada, por exemplo, por sociólogos e antropólogos, entre esses problemas está o apriorismo teórico; segundo, ele consegue colocar a história novamente no centro das atenções, como disciplina aglutinadora de todas as outras por conta da noção de longa duração.
Como Lévi-Strauss, Braudel destrói a concepção linear de tempo que avança para um aperfeiçoamento contínuo, substituindo-o por um tempo quase estacionário, em que o passado, o presente e o futuro não se diferem  e se reproduzem sem descontinuidade. Seria como se somente a ordem da repetição, observada na longa duração, fosse possível. Assim, somente com a história estacionária seria possível dar conteúdo aos meros fatos que atingem a superfícialidade histórica. Por conta disso, diferente de Febvre, Braudel pode ser considerado um determinista histórico, traço esse que será apontado por alguns membros da terceira geração dos Annales. 
O surgimento de uma terceira geração tornou-se mais óbvio nos anos que se seguiram a 1968. Cronologicamente e esquematicamente, pode-se afirmar que a terceira geração se estruturou mais ou menos assim:
1969 - os jovens André Burguière e Jacques Revel se envolveram na administração dos Annales.
1972 - aposentadoria de Braudel; nesse mesmo ano, Jacques Le Goff toma a presidência da VI Seção da "École Pratique des Hautes Études". 
1975 - Jacques le Goff torna-se o presidente da reorganizada "École des Hautes Études en Sciences Sociales”
1977 - Jacques le Goff é substituído por François Furet na "École des Hautes Études".
Diferente das duas primeiras gerações em que há três nomes dominantes, a terceira geração é marcada pela fragmentação, ou seja, parece claro que não há um núcleo dominante. Prevalece assim o policentrismo. 
Uma das marcas da terceira geração é o retorno à história das mentalidades inspirada em Lucien Febvre. Em parte, esse retorno se deve a uma reação a certo negligenciamento de Braudel com relação à história das mentalidades e com relação à história cultural de forma geral. Certamente o personagem que representa melhor essa reação é o historiador “domingueiro” Philippe Ariès. 
O francês Philippe Ariès (1914-1984) rejeitou quase que absolutamente a perspectiva quantitativa do fazer histórico. Seus interesses estavam voltados para as relações entre natureza e cultura, mais especificamente para as formas que a cultura percebe e classifica os fenômenos naturais, tais como a infância e a morte. Uma das conclusões polêmicas de Ariès é a de que a ideia de infância ou, mais exatamente, que o sentimento de infância não existia na Idade Média. Assim, o grupo etário que atualmente chamamos de "crianças" era visto, mais ou menos, como "pequenos animais" até a idade de sete anos e quase como uma miniatura dos adultos daí em diante.
Segundo Ariès, a infância foi descoberta na França, por volta do século XVII. Para sustentar essa tese, o historiador francês sustenta que só por volta do século XVII é que se começou a confeccionar roupas para crianças. Também, cartas e diários documentam o interesse crescente dos adultos com relação ao comportamento dos pequenos. Por fim, há a pesquisa em registros iconográficos; Ariès percebeu, pelo crescente número de quadros de crianças, que a consciência da infância como base para o desenvolvimento humano começa na modernidade, e não antes disso.