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Imagem de Santo Agostinho Afresco de Sandro Botticelli Ano: 1480 |
INTRODUÇÃO
O problema do mal em Agostinho esbarra em basicamente três
problemas: o problema metafísico, o problema da liberdade/ livre
arbítrio e em questões de teologia. Os dois primeiros problemas merecerão
mais atenção, ou seja evitaremos ao máximo tocar em questões teológicas.
Para começar, podemos entender que o problema do mal começa com
ideia de Deus. Deus, na tradição cristã, é o ser perfeito e criador de
todas as coisas. Ele é o Ser enquanto Ser e é aquele que atingiu todas as
virtudes de forma excelente. Se assim é, admitir que o homem pratica o
mal é admitir, em certo sentido, a imperfeição da realidade. Desse modo,
como é possível conciliar a perfeição do criador com imperfeição da
criação?
Para solucionar esse problema, Agostinho inicia com uma análise
metafísica. Ou seja, em vez de começar com uma análise da vontade humana,
o santo da igreja católica inicia sua investigação com a análise do "ser enquanto ser" - Deus.
Na tradição cristã, Deus é o soberano bem, ou seja, ele preenche
todos os espaços daquilo que pode ser considerado o verdadeiro bem. Por
conta disso, Deus é imutável porque ele não precisa se inclinar ou mudar sua
natureza para tentar alcançar determinado bem. Todavia, parece óbvio que
as criaturas criadas por Deus não possuem a marca da perfeição.
Por que isso acontece?
A solução agostiniana começa com a ideia de que a criação foi feita a
partir do nada, ou seja, parte da criação
possui elementos do "ser enquanto ser", ou da perfeição de Deus, e parte possui
elementos do não ser, ou seja, do nada. Assim, o ser humano, criado a
partir do nada, participa tanto do ser quanto do nada. Desse modo, possuímos
uma espécie de falha original que, por sua vez, proporciona a mutabilidade
humana. Essa resposta caminha para a ideia de que toda natureza, inclusive a
humana, é boa por definição, pois qualquer que seja a substância que
consideremos, Deus lhe conferiu a medida, a forma e a ordem (modus, species, ordo). Essas três
perfeições conferem maior ou menor bem de acordo com a medida dada por Deus. A ideia é de que toda natureza, inclusive a humana, é boa por definição pois qualquer que seja a substância que consideremos, Deus lhe conferiu a
medida, a forma e a ordem.
Nesse sentido, o
mal só pode ser a corrupção de uma das perfeições na natureza. Não corrompida,
a natureza seria toda medida, forma e ordem; ou seja, a natureza seria boa.
Todavia, mesmo corrompida, a natureza permanece boa enquanto algo criado por
Deus e é má na medida em que é corrompida pela vontade humana, em função da
falta de ser dessa mesma natureza. Assim, o mal é uma privação. Somos privados
de um bem que deveríamos possuir. O mal, nesse sentido, é a privação do bem.
Por conta dessa
conclusão, Agostinho era contrário à doutrina dos maniqueus ou o MANIQUEÍSMO que consideravam o
mal como sendo um ser. Como visto, para Agostinho, o mal é, na verdade, pura
ausência de ser, ou seja, o mal é um puro nada. O mal nem sequer pode ser
concebido fora do ser, que é um bem. Portanto, a relação do bem com o mal segue
a seguinte lógica: há um Ser que é bom, somente privado de algo é que esse Ser
abre a possibilidade para o mal, como no caso da vontade humana. O não-ser não
tem defeitos; prova disso é que quando falamos do mal, supomos implicitamente a
presença de um bem que, não sendo tudo o que deveria ser, é, por isso, uma
coisa má. Desse modo, o mal não é somente uma privação, é uma privação que mora
ou reside num bem.
Uma vez
colocados esses princípios, é possível explicar a presença do mal no mundo.
Deus criou todas as coisas a partir do nada. Esse ato de criar faz com que a
presença do não-ser seja inevitável, pois criar significa tirar algo do nada ou
do não-ser. O que vem do nada é corruptível e, por conta disso, o homem nem
sempre age de forma boa. Essa resposta parece eximir Deus da presença do mal no
mundo. Mas ela gera uma outra indagação mais complicada: não seria melhor para
Deus nada criar, ao invés de permitir a possibilidade do mal?
Para responder a
essa questão complicada, é necessário entender que a resposta metafísica mais
geral é um primeiro passo para se tentar responder ao problema do mal. Nesse
momento, faz-se necessário desdobrar o problema do mal em dois outros aspectos
para melhor apreciar a resposta agostiniana. Assim, os dois aspectos do
problema do mal tratados por Agostinho se dividem no mal natural e no mal
voluntário ou mal moral. O mal voluntário é o mais complicado de ser tratado,
porque envolve de forma mais complexa relações entre Metafísica, liberdade e
teologia. Desse modo, é melhor focar no mal natural, cuja resposta agostiniana
parece ser mais simples.
A realidade, na
medida que possui algo do "ser enquanto ser", só pode ser considerada como sendo
algo bom. Todavia, todos sabemos que o mundo natural segue a seguinte lei: as
coisas nascem, corrompem-se e morrem. O universo é o teatro das destruições
contínuas que, no caso dos seres humanos, costumam ser acompanhadas por imensos
sofrimentos, tristezas e lutos. Todavia, para Agostinho essa é uma percepção
superficial da realidade. Obviamente, a decadência e a fragilidade corpórea
humana é um fato que causa um inevitável sofrimento. Todavia, os sofrimentos
pontuais são minúsculos se comparados com a obra divina percebida como um todo.
Assim, se há morte e sofrimento, também há nascimento e contentamento com a
beleza da vida. Deus arrumou a realidade física de modo que as coisas fracas
deem lugar às coisas fortes, que as coisas menos fortes deem lugar às mais
fortes. Essa sucessão é bela na sua estrutura geral, pois o desaparecimento e a
recolocação das coisas engendra uma beleza de um gênero distinto a qual não
pode ser percebida pontualmente. Trata-se, por assim dizer, de uma beleza que
só pode ser percebida num longo período de tempo. Desse modo, aquilo que morre
ou que muda não desonra e nem enfeia o equilíbrio do universo, a obra de Deus.
O LIVRE-ARBÍTRIO
Como afirmado, o problema do mal se torna mais complicado quando se tenta lidar com o mal moral, relacionado ao livre-arbítrio humano. O problema aparece da seguinte forma: se as ações dos homens não são sempre o que deveriam ser, a vontade humana é a responsável. O homem escolhe livremente suas decisões e é por ser livre que é capaz de fazer o mal. Eis o problema: se Deus é perfeito, como ele pôde dar-nos o livre-arbítrio, uma vontade capaz de fazer o mal?
Numa primeira
aproximação, não parece forçoso aceitar a ideia de que há muitas coisas boas,
mas das quais podemos fazer mau uso. O vinho, por exemplo, pode servir de
deleites sensoriais dos mais variados, mas pode também trazer embriaguez e
vício. No entanto, isso não é motivo para afirmar que o vinho é algo mal em si
mesmo e nem que Deus não deveria tê-lo criado, pois o vinho é um bem tomado em
si mesmo.
Igualmente, a
vontade, tomada em si mesma, é algo bom, pois sem a vontade não poderíamos
alcançar a beatitude. Desse modo, deve-se reprovar quem faz mal uso da vontade
e não quem a deu para o ser humano. Todavia a pergunta persiste:
Por que Deus nos deu um dom tão perigoso?
É verdade que esse dom pode nos conduzir à verdadeira felicidade de acordo com os mandamentos bíblicos, mas há boas chances dela conduzir ao pecado.
Por que Deus nos deu um dom tão perigoso?
É verdade que esse dom pode nos conduzir à verdadeira felicidade de acordo com os mandamentos bíblicos, mas há boas chances dela conduzir ao pecado.
A liberdade é
uma condição necessária para nos levar à beatitude, o maior bem humano. Em si,
a vontade livre não pode ser um mal. Nesse sentido, a existência dos pecadores
contribui para a perfeição do universo, mas eles não contribuem como pecadores;
eles contribuem como vontades livres e capazes ou não de pecar. Importante
ressaltar que a vontade livre não é um bem absoluto como, por exemplo, a
justiça o é. A justiça é um bem absoluto porque o mal uso dela destrói o seu
significado, ou seja, o mau uso da justiça acarreta em injustiça a qual não
guarda elementos do que seja considerado o justo. Assim, a liberdade é um tipo
de bem mediano, cuja natureza é boa, mas cujo efeito pode ser mau ou bom
segundo a maneira pela qual o homem o usa.
Outro aspecto
importante, na visão agostiniana, a liberdade assim como a razão são
mestras de si mesmas, ou seja, a vontade livre dispõe livremente acerca do seu
objeto de escolha. Logo, só por meio da liberdade depende o mau uso do bem que
ela é. Outro fator que mostra que a liberdade é um bem mediano é a sua
individualização. Um homem não pode ser feliz pela beatitude de outrem; do
mesmo modo que não pode ser prudente, justo ou forte pela prudência, pela
justiça ou força de outro homem. Por isso, a vontade é pessoal e livre, um bem
médio em si mesmo. Esse bem permanece livre para se voltar ao bem supremo e
alcançar a beatitude, ou para se afastar do bem supremo e gozar das coisas
inferiores, atitude essa que consiste o mal moral e o pecado.
Disso tudo,
ainda pode ser feita uma última pergunta:
Como é possível que a vontade tenha optado pelo pecado?
Como é possível que a vontade tenha optado pelo pecado?
Para responder a
essa indagação, é necessário remontar alguns aspectos que foram elaborados até
aqui. Deus é a causa de tudo; sendo assim, ele é a causa do movimento de
aversão pelo qual o livre-arbítrio se desvia do bem supremo para se apegar aos
bens inferiores, e, uma vez que esse desvio cai no pecado, segue-se que Deus é
a causa do pecado. Obviamente, essa seria uma conclusão intolerável para santo
Agostinho.
Mas, se esse
movimento não vem de Deus, de onde vem a inclinação para o pecado?
A resposta de Agostinho
nesse ponto é frustrante. Para o santo da Igreja Católica, a única resposta
sincera que podemos oferecer a essa questão é de que nada sabemos. Nada podemos
saber porque não é possível conhecer o que seja o nada ou o não-ser.
A partir dessa
resposta, cabe uma última pergunta: qual o sentido dessa resposta?
Para começar a
responder essa última indagação, é necessário permanecer nos trilhos
metafísicos inicialmente traçados por Agostinho. Seguindo isso, podemos afirmar
que todo bem vem de Deus; toda natureza é um certo bem; logo, toda natureza vem
de Deus. Assim, enquanto existir um rudimento mínimo que seja do Ser, mesmo que
corrompido, permanece nesse rudimento algo de Deus. Sem dúvida, esse rudimento
pode ser conduzido à sua perfeição. Como afirmado, qualquer esboço de Ser
carrega a marca do criador, a supressão total do bem equivale à total supressão
do Ser.
Nesse sentido,
torna-se contraditório imaginar que Deus seja a origem de aversão ao verdadeiro
bem. Indubitavelmente, Deus criou a vontade mestra de si mesma, capaz tanto de
perseguir a beatitude quanto o pecado. A vontade humana “podendo” se desligar
de Deus, ela não “deveria” seguir esse movimento. Nesse sentido, a queda do
homem não é uma queda natural, como a de uma pedra que cai, mas a queda causada
por uma vontade livre que se deixa abandonar do verdadeiro bem. Assim, o
movimento da queda original advém do nada, ou seja, do não-ser.
Mas,
metafisicamente falando, se o pecado é o nada, como ele teria uma causa
eficiente?
Como já exposto,
só podemos perceber a deficiência do ser, não podemos buscar a causa de uma
falta ou de uma falta de ser. Buscar isso seria o mesmo que tentar achar algo,
som e luz, no silêncio das trevas.
Por fim, qual o
sentido cristão para tudo isso?
O mal ou o
pecado pode ser considerado tão somente uma falta de amor para com Deus. Por sermos
criados a partir do nada, somos mutáveis e, consequentemente, imperfeitos. Essa
imperfeição faz com que nos desviemos do amor para com Deus e, desse modo,
pequemos buscando, por exemplo, prazeres sensíveis. Desse modo, é culpa do
homem introduzir em si e no universo a desordem inicial do pecado, algo que
pode ser bem percebido no pecado original.
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