terça-feira, 14 de maio de 2019

A GENEALOGIA DA MORAL EM NIETZSCHE - PARTE II


Na obra "Ecce Homo", Nietzsche descreve a Genealogia da Moral (GM) como sendo um trabalho construído por um psicólogo que pretende criar uma alternativa para o ascetismo vigente, por meio de uma transvaloração de todos os valores. A “GM” possui um Prólogo e três ensaios, traduzidos como dissertações por Paulo César de Souza. Essas dissertações são:


1) Primeira dissertação: "bom e mau", "bom e ruim";
2) Segunda dissertação: "culpa", "má consciência" e coisas afins e
3)  Terceira dissertação: “o que significam ideais ascéticos?”

O primeiro ensaio examina aquilo que pode ser considerado a psicologia do cristianismo. Nesse ensaio, Nietzsche mostra o nascimento do cristianismo e como o ressentimento cristão operou uma espécie de transvolaração/tresvaloração dos valores em cima da moral do senhor; essa primeira tresvaloração significou um rebaixamento ou uma decadência do espírito humano. O segundo ensaio fornece o que pode ser considerado uma psicologia da consciência. Entre outros, nesse ensaio encontramos a ideia provocante de que não é nem nas éticas tradicionais e nem na voz de Deus que se encontra a verdadeira inclinação humana; aquilo que poderíamos chamar de consciência moral se baseia no instinto de crueldade, o qual proporciona prazer e contentamento para o agente. Relacionada à ideia de crueldade, há também uma crítica à interpretação da ideia de castigo feita pela genealogia tradicional. Finalmente, o terceiro ensaio é uma investigação acerca do que seja o ascetismo ou o ideal asceta, relacionando-o, obviamente, à moral dos fracos. O ascetismo representa uma espécie de perversão da vontade humana, encaminhando essa vontade para o niilismo. Nesse ensaio, também é importante notar que Nietzsche fornece uma espécie de contra-ideal com relação ao ascetismo. Esse contra-ideal é estruturado contra o cristianismo, contra a percepção científica do mundo e a favor da vontade de poder.
Por essa breve descrição dos ensaios, podemos perceber a grande quantidade de temas que Nietzsche analisou. Os temas por si mesmos já possuem uma complexidade normal que tem merecido páginas e páginas de estudo por parte de importantes intelectuais das mais diversas áreas do conhecimento. Além dessa dificuldade normal, nosso autor lida com esses temas de uma maneira não usual e se apropria deles, muitas vezes, de uma maneira muítissimo peculiar. Por conta disso, tentaremos focar em três temas que perpassam não só a “GM”, como também boa parte do pensamento moral nietzscheano. Esses temas são: a reconstrução histórica da moral, o psicologismo
nietzschiano e a vontade de poder.

Inicialmente, é importante ressaltar que a genealogia da moral proposta por Nietzsche não é estruturada em torno da razão, como o são as éticas tracionais de fundo aristotélico, kantiano ou utilitarista. Para ele, a moral moderna representa um sistema de erros que acabaram sendo incorporados pelo pensar, sentir e viver humanos. A moralidade moderna ou tradicional por conta do seu caráter racional tem afastado o homem de sua verdadeira essência ou natureza. Nietzsche aponta cinco erros que levam a entender equivocadamente o ser humano, quatro desses erros se encontram na obra Gaia Ciência 115 e um deles se encontra na “GM”. Esses erros são: nós percebemos a nós mesmos de forma incompleta, nós atribuímos a nós mesmos atributos fictícios, nós nos colocamos num falso ranking com relação aos animais e a natureza, nós constantemente inventamos tabelas daquilo que seja o bom ou o correto e a aceitamos como sendo algo eterno e incondicional. O quinto erro, encontrado logo no início do Prólogo da “GM”, pode ser considerado subjacente  a todos os outros apontados e serve como referência e também orientação para o leitor entender a pesquisa nietzscheana. Esse erro aponta para a ideia de que "nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos - e não sem motivo. Isso acontece porque nós nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos? Uma das barreiras que impede o encontro desse eu, ou do homem, consigo mesmo é justamente a moralidade moderna, a qual se acostumou a aceitá-la como uma espécie de algo em si e incorporada na natureza humana.
A “GM” convida o leitor a avaliar valores que estão profundamente arraigados na consciência moral dos homens, os quais causam medo, apequenamento e barreiras para o instinto de liberdade ou vontade de poder. Para tanto,
é preciso pensar para "além do bem e do mal". No Prólogo:6 da “GM”, Nietzsche defende que a moralidade moderna é na verdade uma ameaça e um sistema perigoso que nos orienta a abrir mão do presente em prol de um futuro, digamos, abstrato. Esse tipo de moralidade, orientado pelo desenvolvimento da cultura cristã, não é capaz de oferecer o mais alto brilho e potência ao tipo homem. Assim, a cultura moderna produz apenas um homem domesticado, manso e civilizado.
Essa cultura de rebanho é alicerçada, principalmente, nos ideais cristãos e democráticos, os quais vão desaguar numa espécie de compaixão comunal. Também, a cultura de rebanho traz consigo os cinco erros apontados anteriormente. Esses erros resultaram num imenso auto-engano. Assim, a cultura de rebanho promete conforto no presente, esperança de um futuro melhor e, o mais importante, a redenção de um passado de culpa (BGE, 202). Para tentar desmascarar a farsa que é a moral de rebanho, Nietzsche recorreu principalmente a três instrumentos: uma  genealogia  da moral por meio da hermenêutica histórica; uma psicologia dos supostos valores morais visando desconstruí-los e a uma espécie de entendimento relativístico dos valores, entendendo-os como sendo o resultado de vontades tão diferentes e, muitas vezes, opacas à razão.

Nietzsche reconhece que a sua genealogia da moral faz parte de uma tradição de estudos conduzida principalmente pelos genealogistas  ingleses. Todavia, o filósofo alemão considera o trabalho inglês bastante superficial por ser pouco crítico, com pouca densidade psicológica e histórica. Assim, o desejo de Nietzsche era fazer uma história tão crítica de acordo com a maxima agudeza que o olhar do historiador pode alcançar; esse máximo alcance traria consigo a imparcialidade. Com esses elementos seria possível montar uma verdadeira história da moral.
Na parte 3 do Prólogo da GM, Nietzsche nos informa que desde os 13 anos estava interessado nas verdadeiras origens do bem e do mal. Nas suas pesquisas, ele conseguiu separar o preconceito teológico do moral, conseguiu também entender que a origem do bem e do mal não estão para além do mundo ou se encontram em algum lugar transcendente. Essas pesquisas levaram à conclusão de que, na verdade, Deus,notadamente o Deus cristão, é o pai do mal. Como ressaltado, ou ao do autor deve essa conclusão alguma educação histórica e filológica, além de um senso seletivo com relação a questões psicológicas. Assim, trabalhos como "além do bem do mal", "GM" e "Ecce homo" tentam desacralizar os conceitos de bem e de mal e também retirar seu pretenso conteúdo apriorístico; nesse sentido, o criticismo nietzscheano se voltará constantemente contra o cristianismo e a ética kantiana.
É necessário ressaltar que, logo no início da Primeira Dissertação, Nietzsche presta uma certa homenagem aos psicólogos ingleses, também chamados de microscopistas da alma, pois eles estão dispostos a revelar a verdade, mesmo que ela seja feia, repulsiva,  amoral, acristã. No entanto, a tendência extremamente mecanicista de se aproximar de questões de valor por parte dos ingleses desagrada profundamente Nietzsche. Esse espírito mecanicista torna a genealogia inglesa um tanto desengonçada.

Além de tudo isso, Nietzsche identifica nos genealogistas tradicionais uma tendência teleológica, estruturada na confusão entre a origem e a finalidade de determinado valor. Esse erro consiste em sublinhar alguma prática institucional ou social contemporânea e colocar essa prática no marco zero do processo histórico. Assim, por exemplo, os genealogistas tracionais descobre no castigo algum tipo de finalidade - como a vingança, a intimidação, ou qualquer outro - e colocam  ingenuamente essa finalidade como sendo a causa de origem do castigo [GM 2:12]. A hermenêutica nietzscheana aponta para a ideia de que a causa da gênese de uma coisa e a sua utilidade final, a sua efetiva utilização e inserção em um sistema de finalidades são duas coisas totalmente diferentes. Assim,a realidade histórica e os valores podem ser sempre interpretados para novos fins; novas interpretações criam novas utilidades. Assim o ajuste interpretativo cria novos sentidos e finalidades que obscurecem os sentidos e finalidades anteriores. Desse modo, se imaginou o castigo como inventado para castigar. Mas, todos os fins e todas as utilidades são apenas indícios de uma vontade de poder, a qual se apoderou de algo menos forte e imprimiu algum tipo de função, a qual não possuía um sentido maior, senão a conquista e o desejo de dominar.
Uma das conclusões mais instigantes da pesquisa nietzscheana é aquilo que ele chamou de fato primordial de toda a história [BGE: 259].

Esse fato é justamente a vontade de poder ou extinto de liberdade. Obviamente, afirmar que a vontade de poder é um fato não significa estar comprometido com uma superficial ou simplória análise empiricista, tão comum entre os ingleses. Talvez, o treinamento filológico de Nietzsche levou-o a ter uma visão de que nenhum fato existe por si próprio, ou melhor, todo fato requer uma interpretação. Assim, nenhum texto fala por si próprio, todo texto exige uma interpretação a qual pode ou não estar ligada a algum sentido do que seja a verdade. Aqui está o grande atrito entre a visão hermenêutica nietzscheana sobre a moral e as éticas apriorísticas de fundo kantiano. Nietzsche acusa os pensadores modernos de fixar um conjunto de leis da natureza, quando na verdade eles estão projetando suas próprias aspirações sobre o mundo natural. O homem moderno, marcado por ideais democráticos e cristãos, construiu uma natureza que acomoda traços de racionalidade, igualitarismo, perdão, bom ordenamento, causa efeito, entre outros valores e ideais decadentes. Assim, a interpretação democrática do mundo sofre de moralismo decadente, ou só de moralismo, problema o qual a interpretação nietzscheana se afasta por conta da descoberta da vontade de poder. Essa vontade permite uma nova apreciação do que seja a dinâmica da vida, incluindo obviamente as mais profundas e primitivas emoções humanas.

Assim, a genealogia da moral de Nietzsche procura os mais profundos, digamos assim, afetos da humanidade e como eles devem ser propriamente apreciados. Esses afetos acabam por desembocar numa espécie de instinto primitivo ou chamado da natureza: a vontade de poder. Essa vontade tem como principal característica o desejo de a tudo dominar.
É importante ressaltar que o vitalismo nietzscheano e a sua genealogia não se acomodam bem ao vitalismo darwinista.O autor alemão considera que a teoria da evolução de Darwin considera apenas a adaptação em termos de fatores  externos, sendo por isso insuficiente para entender o desenvolvimento do animal humano com relação aos seus códigos morais. Assim, a interpretação darwinista desconsidera uma dimensão importante da vida, a qual Nietzsche chama de "atividade", do alemão "Aktivität" [GM 2:12]. Desse modo, a essência da vida é baseada em forças espontâneas, agressivas, expansivas; a verdadeira essência da vida permite a criação de novas formas, interpretações e direções, forças cuja ação necessariamente precede a adaptação. Aliás, a adaptabilidade humana é, na verdade, uma atividade de segunda ordem, uma reatividade.