domingo, 24 de fevereiro de 2019

A FILOSOFIA DA HISTÓRIA EM WALTER BENJAMIN


Quando se fala das relações entre a escola de Frankfurt e a história, logo vem à cabeça a figura de Walter Benjamin. Isso se deve, pelo menos, a quatro fatores.
Walter Benjamin, Paris, 1938
             Foto de Gisèla Freund
Primeiro, Benjamin escreveu de fato um texto dedicado à filosofia da história; esse texto se intitula "Teses sobre a filosofia da história."
Segundo, o texto "Teses sobre a filosofia da história" é até hoje um dos textos mais influentes e comentados sobre filosofia e teoria da história.
Terceiro, o texto de Benjamin mistura de forma criativa e, muitas vezes, de forma inusitada elementos bem diferentes como: o romantismo alemão, o messianismo judeu, o marxismo e a psicanálise freudiana. Esse tipo de espírito "interdisciplinar" cai como uma luva para os propósitos da ESCOLA DOS ANNALES. Como sabido, essa escola francesa fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre, orientou boa parte das pesquisas em história do mundo ocidental e até hoje exerce forte influência no cenário de pesquisa dos historiadores.
Quarto, o carisma de Benjamin. A vida e a obra do pensador alemão inspiraram a rebeldia de vários estudantes e intelectuais inconformados, entre outros, com as injustiças do mundo capitalista [1], com a mentalidade burocrática do mundo acadêmico, com o historicismo.
Arte de Patrick Bremer 
https://www.patrickbremer.co.uk/


Notar que nessa ilustração também aparece a figura de Theodor W. Adorno,
colega de Benjamin na Escola de Frankfurt
Um dos elementos que reforça o "mito Benjamin" é a grande dificuldade de classificar o seu pensamento. Os teóricos da história estão acostumados a classificar as diferentes filosofias da história em alguns aspectos, como, por exemplo, se a explicação é de cunho objetivista ou subjetivista, se os acontecimentos são entendidos linearmente ou de forma cíclica, se o juízo de valor do historiador é conservador ou revolucionário. Walter Benjamin escapa profundamente e sutilmente a esses tipos de classificação. Ele é um crítico feroz da filosofia do progresso técnico, um adversário do marxismo progressista, um nostálgico do passado que sonha com o melhoramento humano, um defensor dos excluídos e perdedores da história. Assim, para melhor entender a teoria da história benjaminiana é necessário entendê-la em conjunto com os escritos de arte, filosofia, literatura e teologia, a fim de diminuir o pensamento deveras fragmentário do autor alemão.
Como anteriormente ressaltado, a filosofia da história de Benjamin bebe em, pelo menos, quatro fontes diferentes: o romantismo alemão, o messianismo judeu, o marxismo e a psicanálise freudiana. Importante ressaltar que a estruturação desses quatro elementos, aparentemente incompatíveis, não é uma mera "síntese". É, antes de tudo,  uma espécie de reinvenção desses elementos, criando uma teoria altamente original. 
Outra coisa a ser observada é que a expressão "filosofia da história" pode ser um tanto equívoca.
Não há, propriamente falando, um sistema filosófico no texto "teses sobre filosofia da história". Toda a reflexão benjaminiana nesse texto está assentada sobre a forma de ensaios ou fragmentos, com várias citações e passagens emolduradas de acordo com os interesses muito particulares do autor. Desse modo, qualquer tentativa de sistematizar as reflexões acerca da história em Benjamin são complexas, problemáticas e talvez sujeitas ao fracasso. Todavia, há algumas chaves no pensamento de Benjamin que podem ajudar a encaminhar, pelo menos inicialmente, o que Benjamim entende por história.
Uma primeira chave é entender que Benjamin se via como um autor utópico. Esse utopismo é assentado no messianismo judaico e na ideia de revolução de fundo marxista. Esses dois elementos seriam uma espécie de antídoto contra a ideia de um progresso histórico da humanidade que anda de mãos dadas com o historicismo. 
Para entender as relações entre messianismo e marxismo, é necessário entender qual o aspecto do pensamento de Karl Marx mais interessa a Benjamin. 
Na obra "TESES SOBRE A FILOSOFIA DA HISTÓRIA", a tese XIV [2] começa com uma citação de Karl Kraus, jornalista e poeta austríaco: "A origem é o alvo".

TESE IV
"A Origem é o Alvo."
Karl Kraus, Palavras em verso 

A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de "agoras". Assim, a Roma antiga era para Robespierre um passado carregado de "agoras", que ele fez explodir do continuum da história. A Revolução Francesa se via como uma Roma ressurreta. Ela citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário antigo. A moda tem um faro para o actual, onde quer que ele esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao passado. Somente, ele se dá numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo salto, sob o livre céu da história, é o salto dialético da Revolução, como o concebeu Marx. 

Nessa tese, Benjamin mostra parte de sua nostalgia com relação ao passado ou com relação à reconstrução do passado. Obviamente, essa reconstrução é impossível nos moldes do historicismo, em que impera o tempo homogêneo e vazio, semelhante ao funcionamento do aparato de um relógio.
Esse resgate do passado só é possível numa noção de tempo repleto de atualidades, repleto de "agoras", como se fosse uma espécie de encontro "espiritual" com algum membro, algum grupo ou algum acontecimento do passado. A ideia de progresso só permite enxergar a vitória das classes dominantes. Contra isso se faz necessário um retorno para uma condição pré capitalista, talvez um passado adâmico em que as forças espirituais não seriam comandadas pela brutalidade das forças materiais. Assim, a noção de luta de classes marxista vai permitir que os oprimidos entrem no teatro da história. 
Na tese XII [3], aparece claramente a ideia de que o sujeito do conhecimento histórico é a classe combatente e oprimida. 

TESE XII

"Precisamos da história, mas não como precisam dela os ociosos que passeiam no jardim da ciência." 
Nietzsche, Vantagens e desvantagens da história para a vida 

O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida. Em Marx, ela aparece como a última classe escravizada, como a classe vingadora que consuma a tarefa de libertação em nome das gerações de derrotados. Essa consciência, reativada durante algum tempo no movimento espartaquista, foi sempre inaceitável para a socialdemocracia. Em três decênios, ela quase conseguiu extinguir o nome de Blanqui, cujo eco abalara o século passado. Preferiu atribuir à classe operária o papel de salvar gerações futuras. Com isso, ela a privou das suas melhores forças. A classe operária desaprendeu nessa escola tanto o ódio como o espírito de sacrifício. Porque um e outro se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, e não dos descendentes liberados. 

Na visão de Benjamin, essa classe aparece na obra de Marx como a última classe escravizada, como a classe vingadora que, em nome de gerações de vencidos, leva até o fim a obra da libertação. Parece claro que essa classe é o proletariado. 
Politicamente, o anti-progressismo benjaminiano ataca a social democracia que, em termos gerais, coloca a conquista de bens materiais como sinal de melhoramento da humanidade. Todavia, esse  anti-progressivismo também respingará no marxismo, pelo menos no marxismo evolucionista. O frankfurtiano não concebe a revolução como o resultado "natural" ou "inevitável" do progresso econômico e técnico, mas como a interrupção de uma evolução histórica que conduz à catástrofe.
Assim, a ideia de revolução em Benjamin carrega consigo outras duas noções, além da noção de luta de classes, as noções de pessimismo e de choque/trauma. 
Sigmund Freud, por Max Halberstadt, em 1922
A noção de trauma é inspirada em Freud, pai da psicanálise. Superficialmente falando, um trauma tem um efeito posterior semelhante ao de uma experiência imediata, mas no nível inconsciente. Exemplificando, o ser humano é submetido a determinados traumas nas fases infantis, traumas que não produzem necessariamente choques nessas fases iniciais da vida, mas esses choques aparecem mais tarde, em fases mais adiantadas, causando profundo abalo na psicologia de alguém. 
A apropriação do trauma na concepção de história de Benjamin está na ideia de que as imagens históricas - vindas do passado, obviamente - ganham uma percepção de  concretude maior do que no tempo em que os acontecimentos realmente ocorreram. Tentando facilitar essa ideia, a atualidade do acontecimento fixado na contra memória é maior do que a atualidade do acontecimento em seu tempo real. Tudo isso, Benjamin chama de concretude histórica. Assim, a concretude histórica aparece quando presentificamos algo do passado numa rápida imagem, essa rápida imagem ganha uma concretude mais intensa do passado do que o passado teve na facticidade da história. Na tese V [4], é afirmado que a verdadeira imagem do passado perpassa velozmente. O passado só se deixa fixar como imagem que relampeja irreversivelmente no momento em que é reconhecido.

TESE V

A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. "A verdade nunca nos escapará" — essa frase de Gottfried Keller caracteriza o ponto exato em que o historicismo se separa do materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela. 

O caráter nostálgico de Benjamin é reforçado pelo seu pessimismo. Esse pessimismo aparece na obra  "O surrealismo" de 1929, na qual é invocado um pessimismo revolucionário e não um pessimismo resignado, fatalista, conservador e reacionário o qual facilitará atitudes pré-fascistas. O pessimismo revolucionário está a serviço das classes oprimidas; sua preocupação não é simplesmente o declínio das elites, como quer certo tipo de marxista, mas esse pessimismo foca suas críticas no progresso técnico e econômico promovido e homenageado pela mentalidade capitalista. 
Nada parece mais ridículo aos olhos de Benjamin do que o otimismo dos partidos burgueses e da social democracia com relação à ideia de progresso. Contra esse otimismo sem consciência, inspirado pela ideologia do progresso linear, nosso autor descobre no pessimismo algo ativo, organizado e prático, algo inteiramente dedicado ao objetivo de impedir, por todos os meios possíveis, a chegada da catástrofe, encoberta pelo fascínio com relação ao progresso. O alvo, aqui, é bem claro: o fascismo. O fascismo leva às últimas consequências a combinação tipicamente moderna de progresso técnico e regressão social. Não é à toa que, na literatura, Benjamim tecerá críticas ao movimento futurista, fundado pelo italiano FILIPPO MARINETTI. O MANIFESTO FUTURISTA de 1909 exaltava as maravilhas tecnológicas, como bombas e tanques de guerra, e pregava a destruição de qualquer vestígio de monumentos históricos.
O pessimismo ativo de Benjamin está a serviço do criticismo. Esse criticismo permite melancolicamente perceber que o historicismo se identifica com os vencedores da história. Esses vencedores se tornam os donos do poder e, assim, a lógica perversa está completa, ou seja, o historicismo se identifica com os vencedores que são os detentores do poder. Na tese VII [5], é afirmado que não há um bem cultural que não tenha algum elemento de barbárie. Essa tese é um pouco longa e com citações muito específicas e com certo grau de erudição, mas vale a citação completa dessa tese. 

TESE VII

"Pensa na escuridão e no grande frio Que reinam nesse vale, onde soam lamentos." 
Brecht, Ópera dos três vinténs 

Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em ressuscitar uma época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história. Impossível caracterizar melhor o método com o qual rompeu o materialismo histórico. Esse método é o da empatia. Sua origem é a inércia do coração, a acedia, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz. Para os teólogos medievais, a acedia era o primeiro fundamento da tristeza. Flaubert, que a conhecia, escreveu: "Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage". A natureza dessa tristeza se tomará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo. 

Os vitoriosos participam de uma grande marcha triunfal, celebrada por cima daqueles que estão atirados no chão. Os vencedores não conseguem rememorar o passado sem que isso seja acompanhado de horror. Por isso, eles preferem olhar para o futuro e se agarrar na ideia de progresso. Assim, o progresso técnico não traz necessariamente consigo o progresso moral. 
Essa visão crítica, baseada em elementos de pessimismo e de melancolia, permitiram que Benjamin percebesse, mesmo que intuitivamente, as catástrofes que marcarão profundamente não só a história européia, mas também a humanidade. No texto "O Surrealismo”, Benjamin ironiza as "benfeitorias" realizadas pela empresa aérea Luftwaffe e pelo conglomerado químico I.G. Farben. A primeira infligiu profundos danos a várias cidades e populações europeias durante a Segunda Guerra Mundial. No mesmo período,  a Farben se destacaria pela fabricação do gás Ziklon B utilizado para racionalizar o genocídio. 

NOTAS

[1] Ver a apresentação de Michael Löwy explicando o seu próprio livro intitulado "Walter Benjamin, intérprete do capitalismo como religião". 
https://www.youtube.com/watch?v=gPsLrvhO3TE
[2] Sigo a tradução de Paulo Rouanet, 1985. 
[3] Sigo a tradução de Paulo Rouanet, 1985.
[4] Sigo a tradução de Paulo Rouanet, 1985.
[5] Sigo a tradução de Paulo Rouanet, 1985.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


BENJAMIN, Walter. Magia e técnica,  arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Editora brasiliense, São Paulo: SP, 1985.  (4a ed.)