Quando se fala das relações entre a escola de Frankfurt e a história,
logo vem à cabeça a figura de Walter Benjamin. Isso se deve, pelo menos, a
quatro fatores.
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Walter Benjamin, Paris, 1938 Foto de Gisèla Freund |
Segundo, o texto "Teses sobre a filosofia da história" é até
hoje um dos textos mais influentes e comentados sobre filosofia e teoria da
história.
Terceiro, o texto de Benjamin mistura de forma criativa e, muitas vezes,
de forma inusitada elementos bem diferentes como: o romantismo alemão, o
messianismo judeu, o marxismo e a psicanálise freudiana. Esse tipo de espírito
"interdisciplinar" cai como uma luva para os propósitos da ESCOLA DOS ANNALES. Como sabido, essa escola francesa fundada por Marc Bloch e Lucien
Febvre, orientou boa parte das pesquisas em história do mundo ocidental e até
hoje exerce forte influência no cenário de pesquisa dos historiadores.
Quarto, o carisma de Benjamin. A vida e a obra do pensador alemão
inspiraram a rebeldia de vários estudantes e intelectuais inconformados, entre
outros, com as injustiças do mundo capitalista [1], com a mentalidade burocrática
do mundo acadêmico, com o historicismo.
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Arte de Patrick Bremer https://www.patrickbremer.co.uk/ Notar que nessa ilustração também aparece a figura de Theodor W. Adorno, colega de Benjamin na Escola de Frankfurt |
Como anteriormente ressaltado, a filosofia da história de Benjamin bebe
em, pelo menos, quatro fontes diferentes: o romantismo alemão, o
messianismo judeu, o marxismo e a psicanálise freudiana. Importante ressaltar
que a estruturação desses quatro elementos, aparentemente incompatíveis, não é
uma mera "síntese". É, antes de tudo, uma espécie de reinvenção
desses elementos, criando uma teoria altamente original.
Outra coisa a ser observada é que a expressão "filosofia da
história" pode ser um tanto equívoca.
Não há, propriamente falando, um sistema filosófico no texto "teses
sobre filosofia da história". Toda a reflexão benjaminiana nesse texto
está assentada sobre a forma de ensaios ou fragmentos, com várias citações e
passagens emolduradas de acordo com os interesses muito particulares do autor.
Desse modo, qualquer tentativa de sistematizar as reflexões acerca da história
em Benjamin são complexas, problemáticas e talvez sujeitas ao fracasso.
Todavia, há algumas chaves no pensamento de Benjamin que podem ajudar a
encaminhar, pelo menos inicialmente, o que Benjamim entende por história.
Uma primeira chave é entender que Benjamin se via como um autor utópico.
Esse utopismo é assentado no messianismo judaico e na ideia de revolução de
fundo marxista. Esses dois elementos seriam uma espécie de antídoto contra a
ideia de um progresso histórico da humanidade que anda de mãos dadas com o
historicismo.
Para entender as relações entre messianismo e marxismo, é necessário
entender qual o aspecto do pensamento de Karl Marx mais interessa a
Benjamin.
Na obra "TESES SOBRE A FILOSOFIA DA HISTÓRIA", a tese XIV [2] começa
com uma citação de Karl Kraus, jornalista e poeta austríaco: "A origem é o
alvo".
TESE IV
"A Origem é o Alvo."
Karl Kraus, Palavras em verso
A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas
um tempo saturado de "agoras". Assim, a Roma antiga era para Robespierre um passado
carregado de "agoras", que ele fez explodir do continuum da história. A Revolução
Francesa se via como uma Roma ressurreta. Ela citava a Roma antiga como a moda cita
um vestuário antigo. A moda tem um faro para o actual, onde quer que ele esteja na
folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao passado. Somente, ele se
dá numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo salto, sob o livre céu da
história, é o salto dialético da Revolução, como o concebeu Marx.
Nessa tese, Benjamin mostra parte de sua nostalgia com relação ao
passado ou com relação à reconstrução do passado. Obviamente, essa reconstrução
é impossível nos moldes do historicismo, em que impera o tempo homogêneo e
vazio, semelhante ao funcionamento do aparato de um relógio.
Esse
resgate do passado só é possível numa noção de tempo repleto de atualidades,
repleto de "agoras", como se fosse uma espécie de encontro
"espiritual" com algum membro, algum grupo ou algum acontecimento do
passado. A ideia de progresso só permite enxergar a vitória das classes
dominantes. Contra isso se faz necessário um retorno para uma condição pré
capitalista, talvez um passado adâmico em que as forças espirituais não seriam comandadas pela brutalidade das forças materiais. Assim, a noção de luta de
classes marxista vai permitir que os oprimidos entrem no teatro da
história.
Na tese XII [3], aparece claramente a ideia de que o sujeito do conhecimento
histórico é a classe combatente e oprimida.
TESE XII
"Precisamos da história, mas não como precisam dela
os ociosos que passeiam no jardim da ciência."
Nietzsche, Vantagens e desvantagens da história para a vida
O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida. Em Marx,
ela aparece como a última classe escravizada, como a classe vingadora que consuma a
tarefa de libertação em nome das gerações de derrotados. Essa consciência, reativada
durante algum tempo no movimento espartaquista, foi sempre inaceitável para a socialdemocracia. Em três decênios, ela quase conseguiu extinguir o nome de Blanqui, cujo eco
abalara o século passado. Preferiu atribuir à classe operária o papel de salvar gerações
futuras. Com isso, ela a privou das suas melhores forças. A classe operária desaprendeu
nessa escola tanto o ódio como o espírito de sacrifício. Porque um e outro se alimentam da
imagem dos antepassados escravizados, e não dos descendentes liberados.
Na visão de Benjamin, essa classe
aparece na obra de Marx como a última classe escravizada, como a classe
vingadora que, em nome de gerações de vencidos, leva até o fim a obra da
libertação. Parece claro que essa classe é o proletariado.
Politicamente, o anti-progressismo benjaminiano ataca a social
democracia que, em termos gerais, coloca a conquista de bens materiais como
sinal de melhoramento da humanidade. Todavia, esse anti-progressivismo
também respingará no marxismo, pelo menos no marxismo evolucionista. O frankfurtiano não concebe a revolução como o resultado "natural" ou
"inevitável" do progresso econômico e técnico, mas como a interrupção
de uma evolução histórica que conduz à catástrofe.
Assim, a ideia de revolução em Benjamin carrega consigo outras duas
noções, além da noção de luta de classes, as noções de pessimismo e de
choque/trauma.
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Sigmund Freud, por Max Halberstadt, em 1922 |
A apropriação do trauma na concepção de história de Benjamin está na
ideia de que as imagens históricas - vindas do passado, obviamente - ganham uma percepção de concretude maior do que no tempo em que os
acontecimentos realmente ocorreram. Tentando facilitar essa ideia, a atualidade
do acontecimento fixado na contra memória é maior do que a atualidade do
acontecimento em seu tempo real. Tudo isso, Benjamin chama de concretude
histórica. Assim, a concretude histórica aparece quando presentificamos algo do
passado numa rápida imagem, essa rápida imagem ganha uma concretude mais
intensa do passado do que o passado teve na facticidade da história. Na tese V [4],
é afirmado que a verdadeira imagem do passado perpassa velozmente. O passado só
se deixa fixar como imagem que relampeja irreversivelmente no momento em que é
reconhecido.
TESE V
A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como
imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. "A verdade
nunca nos escapará" — essa frase de Gottfried Keller caracteriza o ponto exato em que o
historicismo se separa do materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do
passado que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela.
O caráter nostálgico de Benjamin é reforçado pelo seu pessimismo. Esse
pessimismo aparece na obra "O surrealismo" de 1929, na qual é
invocado um pessimismo revolucionário e não um pessimismo resignado, fatalista,
conservador e reacionário o qual facilitará atitudes pré-fascistas. O
pessimismo revolucionário está a serviço das classes oprimidas; sua preocupação
não é simplesmente o declínio das elites, como quer certo tipo de marxista, mas
esse pessimismo foca suas críticas no progresso técnico e econômico promovido e
homenageado pela mentalidade capitalista.
Nada parece mais ridículo aos olhos de Benjamin do que o otimismo dos
partidos burgueses e da social democracia com relação à ideia de progresso.
Contra esse otimismo sem consciência, inspirado pela ideologia do progresso linear,
nosso autor descobre no pessimismo algo ativo, organizado e prático, algo
inteiramente dedicado ao objetivo de impedir, por todos os meios possíveis, a
chegada da catástrofe, encoberta pelo fascínio com relação ao progresso. O
alvo, aqui, é bem claro: o fascismo. O fascismo leva às últimas consequências a
combinação tipicamente moderna de progresso técnico e regressão social. Não é à
toa que, na literatura, Benjamim tecerá críticas ao movimento futurista,
fundado pelo italiano FILIPPO MARINETTI. O MANIFESTO FUTURISTA de 1909 exaltava
as maravilhas tecnológicas, como bombas e tanques de guerra, e pregava a
destruição de qualquer vestígio de monumentos históricos.
O pessimismo ativo
de Benjamin está a serviço do criticismo. Esse criticismo permite
melancolicamente perceber que o historicismo se identifica com os vencedores da
história. Esses vencedores se tornam os donos do poder e, assim, a lógica
perversa está completa, ou seja, o historicismo se identifica com os vencedores
que são os detentores do poder. Na tese VII [5], é afirmado que não há um bem
cultural que não tenha algum elemento de barbárie. Essa tese é um pouco longa e com citações muito específicas e com certo grau de erudição, mas vale a citação completa dessa tese.
TESE VII
"Pensa na escuridão e no grande frio
Que reinam nesse vale, onde soam lamentos."
Brecht, Ópera dos três vinténs
Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em ressuscitar uma época que
esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história. Impossível caracterizar melhor
o método com o qual rompeu o materialismo histórico. Esse método é o da empatia. Sua
origem é a inércia do coração, a acedia, que desespera de apropriar-se da verdadeira
imagem histórica, em seu relampejar fugaz. Para os teólogos medievais, a acedia era o
primeiro fundamento da tristeza. Flaubert, que a conhecia, escreveu: "Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage". A natureza dessa tristeza se
tomará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece
uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num
momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia
com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o
materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em
que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os
despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos
bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os
bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror.
Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à
corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que
não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de
barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do
possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a
contrapelo.
Os vitoriosos participam de
uma grande marcha triunfal, celebrada por cima daqueles que estão atirados no
chão. Os vencedores não conseguem rememorar o passado sem que isso seja
acompanhado de horror. Por isso, eles preferem olhar para o futuro e se agarrar
na ideia de progresso. Assim, o progresso técnico não traz necessariamente
consigo o progresso moral.
Essa visão crítica,
baseada em elementos de pessimismo e de melancolia, permitiram que Benjamin
percebesse, mesmo que intuitivamente, as catástrofes que marcarão profundamente
não só a história européia, mas também a humanidade. No texto "O
Surrealismo”, Benjamin ironiza as "benfeitorias" realizadas pela
empresa aérea Luftwaffe e pelo conglomerado químico I.G. Farben. A primeira
infligiu profundos danos a várias cidades e populações europeias durante a
Segunda Guerra Mundial. No mesmo período, a Farben se destacaria pela
fabricação do gás Ziklon B utilizado para racionalizar o genocídio.
NOTAS
[1] Ver a apresentação de Michael Löwy explicando o seu próprio livro intitulado "Walter Benjamin, intérprete do capitalismo como religião".
https://www.youtube.com/watch?v=gPsLrvhO3TE
[2] Sigo a tradução de Paulo Rouanet, 1985.
[3] Sigo a tradução de Paulo Rouanet, 1985.
[4] Sigo a tradução de Paulo Rouanet, 1985.
[5] Sigo a tradução de Paulo Rouanet, 1985.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Editora brasiliense, São Paulo: SP, 1985. (4a ed.)
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