segunda-feira, 15 de novembro de 2010

UTOPIA

Entendo que qualquer projeto político possui algum teor utópico. Melhor, projetos políticos os mais diversos estão carregados de ideais utópicos. Entre esses ideais podemos citar: a busca pela liberdade, a busca pela igualdade, a busca pela justiça, a busca pelo bem estar social, ou, o mais genérico, a busca por uma sociedade melhor. SIR THOMAS MORE, por exemplo, acreditava que um projeto político decente deveria colocar o bem público acima dos interesses pessoais; a maior parte das sociedades liberais tem como meta estabelecer uma sociedade livre; na Europa Ocidental, a partir dos anos 60 do século XX, predominou a busca pelo estado de bem estar social; mesmo um sistema político autoritário, como o nazismo alemão, tinha por base vários ideais utópicos, como, por exemplo, a busca de determinado tipo de vida que encontrava raízes no passado germânico. Atualmente, no Brasil, a busca pelo fim da desigualdade social pode ser considerado um ideal utópico.
Todavia, apesar de ideais utópicos estarem na base dum projeto político qualquer, o termo "utopia" tem sido constantemente evitado. Isso se deve basicamente a dois fatores:

1) O termo "utopia" (utopia = lugar nenhum) ganhou ao longo dos séculos uma conotação negativa. Hoje, quando se diz que o "o projeto X é utópico", isso quer dizer que o projeto X é fantasioso, não está amarrado com a realidade, ou é um projeto muito ingênuo, beirando a estupidez.

2) Ideais políticos, mesmo os mais legítimos são, na sua maior parte, realmente inalcançáveis e, nesse sentido, utópicos. Todo projeto político envolve valores conflitantes já no seu nascedouro. Assim, a busca por um ideal político afeta muitos interesses; nem sempre, todos os grupos sociais buscam os mesmos ideais, o que solapa qualquer projeto de uma sociedade totalmente harmônica. Também, talvez vários ideais políticos esbarrem na sua impraticabilidade, quando os almejamos de maneira absoluta, pois os interesses humanos são muitos, tendem a "querer tudo" e são limitados por fatores externos, como os interesses das outras pessoas, os interesses das outras noções e as condições naturais.

Temos, assim, um certo paradoxo nos diversos projetos políticos: de um lado, se aceita ideais utópicos como base de projetos políticos mais amplos; de outro lado, se reconhece que certos ideais utópicos são impossíveis de serem realizados nesse mundo, se almejamos valores como a igualdade, a liberdade, a justiça ou o bem estar social de modo absoluto.
Deveríamos então pensar numa nova maneira de encarar o papel da utopia. Ainda mais num mundo plural e instável que acontecemos de estar.


O objetivo do artigo "O papel da utopia", escrito em 2006, é tentar estabelecer uma nova maneira de se perceber ideais utópicos a partir do pluralismo de valores.



terça-feira, 5 de outubro de 2010

LEI É CABEÇA DE JUIZ?



No Brasil existe uma sensação amplamente compartilhada de que "lei é cabeça de juiz". Na base dessa afirmação se encontram, pelo menos, três pressupostos:


1) A justiça no Brasil não é cega, ou seja, ainda não se atingiu certa noção de imparcialidade almejada por muitos profissionais da justiça

2) Apesar da existência de normas jurídicas frequentemente bem orientadas e amplamente acordadas, os juízes possuem o "poder" de desconsiderar tudo isso e tomar decisões que estão fora do "livro de regras"

3) Os juízes estão acima da lei

Num estado democrático e de direito - como se pressupõe ser o Brasil - espera-se que o judiciário sirva para atender ao cidadão nos seus direitos mais básicos; também, espera-se que o judiciário sirva como instrumento para o equilíbrio social. Todavia, nenhuma dessas é devidamente atendida.
No Brasil o sistema judiciário é, na sua maior parte, lento. Essa lentidão costuma prejudicar pessoas que urgem por uma resposta jurídica que tem o potencial de definir dramaticamente a vida de alguém. Também, a demora na resolução de processos faz com que muitos cidadãos simplesmente desistam de lutar por algo, causando um sentimento de desamparo que perigosamente flerta com o "fazer justiça com as próprias mãos".

Disponibilizo o link para uma aula magna realizada na Católica de Brasília em que o palestrante, Ivo Teixeira Gico Jr., aborda os problemas elencados acima de forma inusitada.

A palestra é longa mas vale a pena não só pelo tema, mas também pela habilidade do palestrante.

Não poderia deixar de comentar o episódio da "decisão" do STF sobre a questão da Lei da Ficha Limpa. Esse episódio mostra, entre outros, o descompasso gritante entre o que pode ser considerado uma conquista socialmente importante e o pensamento do judiciário.



domingo, 8 de agosto de 2010

Wittgenstein: o Tractatus Logico-Philosophicus (TLF) e as Investigações Filosóficas (IF)

Uma pequena análise da Filosofia da Linguagem de Wittgenstein





Este texto é uma tentativa de capturar o projeto de Ludwig Wittgenstein(1889-1951) contido no Tractatus Logico-Philosophicus (TLP), editado originalmente em 1921. Para tanto, resolvi comparar certos aspectos do TLP com outra importante obra de Wittgenstein intitulada Investigações Filosóficas (IF), publicada, após a sua morte, em 1953.

Apesar de, comumente, a obra IF possuir o status de obra madura com relação ao TLP, penso que esse último é filosoficamente mais interessante. Ainda mais, podemos entender que os projetos contidos na TLP e nas IF possuem interesses distintos sobre o funcionamento da linguagem. Enquanto o TLP esbarra em questões metafísicas, epistemológicas e lógicas de difícil trato, a pretensão nas IF é descrever como de fato nós usamos a linguagem. Obviamente, o nível lógico-metafísico e o pragmático podem possuir pontos de contato, mas são abordagens diferenciadas para um mesmo fenômeno que é a linguagem.

No TLF, Wittgenstein está preocupado com as relações entre linguagem e mundo. Para ele, essa relação se dá através da teoria da figuração. Há, nessa teoria, a concepção de que o pensamento representa algo dos fatos do mundo. Como o pensamento se dá por meio de proposições, então as proposições representam, de alguma forma, o mundo. No aforismo 2.12, encontramos a seguinte passagem: “a figuração é um modelo da realidade”. Esse modelo é como uma foto ou uma espécie de maquete que usamos para representar e tentar capturar o real, capturar o mundo. A figuração (foto ou maquete) possui, então, uma relação com a realidade (TLF: 2.14, 2.15, 2.151, 2.1514, 2.161 e 2.17). Essa relação é estruturada logicamente pelas proposições. Desse modo, entender a linguagem – que significa entender o mundo – é compreender as regras da lógica que estão escondidas embaixo de uma gramática de superfície que é a gramática usada cotidianamente.

Há no TLF uma correspondência entre a estrutura do mundo e a estrutura da linguagem. A partir do que Wittgenstein escreveu da sua teoria da figuração, é possível fazer uma associação precária entre mundo e linguagem. Em 2.131, Wittgenstein afirmou que “Os elementos da figuração representam nela os objetos”. Aqui, temos uma relação entre os elementos da figuração – que é uma estrutura da linguagem – e os objetos – que é uma estrutura do mundo; ou, Wittgenstein está preocupado em encontrar relações entre Semântica, Metafísica e Epistemologia. Todavia, resta descobrir o que são esses elementos da figuração correspondentes aos objetos. No aforismo 3.203, há a afirmação de que “O nome significa o objeto”, ou seja, os elementos da figuração parecem ser os nomes. Se isto está correto, então temos aqui duas estruturas se correspondendo: os nomes e os objetos. Essas parecem ser as estruturas mais simples da linguagem e do mundo e vão fundamentar, ao que parece, todas as outras estruturas contidas no TLF. Essas estruturas (estado de coisas, proposições, fatos) estão concatenadas por uma estrutura lógica, pois “A construção lógica é comum a todos” (TLF: 4.014 e 4.0141).

A relação entre nome e objeto é bem difícil de entender no TLF. Nas IF, Wittgenstein critica “o autor do TLF” (IF: 23) por não compreender que há vários usos para a linguagem, como usá-la para comandar, descrever, conjecturar, inventar uma história, representar teatro e outros. Mas o que isso significa?

Significa que não há apenas uma maneira de entender a linguagem, o que era uma forte tese no TLF (TLF: 3.201 e 3.25). Em algumas partes das IF, Wittgenstein faz críticas à teoria da nomeação (IF: 1 e 244) que parece ser a teoria adotada no TLF. Desse modo, no TLF a ligação entre nome e objeto se dá através da nomeação, ou seja, os nomes representam ou significam objetos. Desse modo, descobrir significados é entender a gramática profunda que subjaz as sentenças da gramática de superfície. Notar bem: a gramática profunda é percebida por meio do cálculo proposicional.

O cálculo proposicional pode ser entendido pelas regras da lógica que determinam uma única maneira de entender a linguagem. Assim, entender a linguagem significa entender as regras da lógica. Desse modo, basta admitir a notação lógica para ser forçosamente guiado pelas suas regras (TLF: 5.514) e encontrar o significado de determinada expressão. Nesse caso, somente expressões proposicionais podem ser analisadas, ou seja, podem ser passíveis de verdade ou falsidade (TLF: 4.022, 4.023 e 4.024). Forçosamente, as proposições têm que possuir alguma relação com o mundo; proposições que não fazem isso estão fora do interesse do TLF.

Como mostrado até aqui, há no TLF uma espécie de monismo lingüístico, ou seja, há uma única maneira de se entender a linguagem que é por meio de sua estrutura lógica. Nas IF, desaparece a teoria monista; nessa obra, Wittgenstein parece adotar uma teoria pluralista da linguagem. Não há mais uma lógica da linguagem, há uma multiplicidade de significados que se dão nas práticas lingüísticas de cada comunidade (IF: 1). Wittgenstein troca a análise lógica da linguagem pela noção de jogos de linguagem (JL) (IF: 7).

A noção de jogos de linguagem na IF é muito fluida e vaga, diferente da teoria da figuração encontrada no TLF, em que encontramos uma noção mais precisa, mesmo que muito abstrata. Pode-se afirmar que nas IF, diferente do TLF, para entender a linguagem é necessário entender os JL. No aforismo 65 das IF, Wittgenstein não busca mais uma essência da linguagem. No máximo, só podemos afirmar que os diversos JL têm um “parentesco”. Wittgenstein chega mesmo a afirmar que “não há uma coisa comum a esses fenômenos”, ou seja, aos JL. Para tentar exemplificar isto é usado um exemplo de como se jogam vários tipos de jogos (IF: 66). Nesse exemplo, se pretende mostrar que, intuitivamente, os vários tipos de jogos – desde os jogos de tabuleiro até os esportes – possuem algum parentesco, embora cada um deles tenha a sua autonomia. Este exemplo também nos esclarece que entender uma linguagem não é, como se queria no TLF, entender a sua forma lógica, mas participar de uma atividade que se articula com um Modo de Vida.

Enquanto no TLF existia a noção de que há uma gramática profunda que se oculta sob quilos e quilos de uma gramática superficial, nas IF não há essa dicotomia. A gramática nas IF não dita regras independentes das práticas coletivas, ela está situada dentro das atividades dos diversos JL. Esta gramática se dá de forma pública; ou seja, há nada para além dessa gramática. A abstração e o monismo semântico do TLF desaparecem. Usar corretamente a linguagem significa compreender o domínio público. Esse domínio não é algo oculto pairando para além das vontades e dos acordos humanos. Desse modo, Wittgenstein tira a linguagem dos céus e a coloca perto do contato humano, pois “Correto e falso é o que os homens dizem; e na linguagem os homens estão de acordo. Não é um acordo sobre as opiniões, mas sobre o modo de vida” (IF: 241). Nesse aforismo, Wittgenstein parece defender que uma verdade essencial da linguagem é uma quimera. O que há é um acordo entre as pessoas para que a linguagem tenha alguma utilidade pública, nada mais nada menos.

Entender a linguagem significa compreender o jogo ou os jogos de uma determinada comunidade lingüística. Compreender, neste sentido, significa, então, entender e dominar uma técnica – seguir uma regra (IF: 199) -, pois a linguagem ela mesma possui regras. No aforismo 185, é exposto o problema do menino que supostamente usa regras para escrever séries de números cardinais. Todavia, o aluno parece começar a aplicar as regras que o professor lhe ensinou de modo equivocado e, a partir daí, Wittgenstein começa a lançar alguns questionamentos que estão tácitos nos aforismos que lidam com esse problema: como pode alguém aprender uma regra? Como é possível alguém seguir esta regra? Onde estão os padrões que mostram que alguém está aplicando corretamente esta regra? Será que estes padrões se encontram na mente do agente ou será que são padrões socialmente aprendidos?

Como já visto, seguir as regras nas IF não é o mesmo que compreender as regras da lógica. Seguir as regras significa compreender os JL. As regras dos JL não são tão rígidas e monolíticas quanto poderíamos conceber no TLF. Neste há uma forte noção de acerto ou erro, associados a se fazemos asserções verdadeiras ou falsas acerca do mundo. Desse modo, a linguagem funciona de forma independente da vontade humana. Por isso, Wittgenstein afirma que “A totalidade das proposições verdadeiras é toda a ciência natural (ou a totalidade das ciências naturais)” (TLF: 4.11), ou seja, as proposições precisam ser verificadas empiricamente para que tenham algum sentido, é preciso saber se os fenômenos correspondem às afirmações proposicionais e às representações que fazemos deles. Wittgenstein chega a usar nas IF a imagem do funcionamento da máquina para atacar a concepção de linguagem contida no TLF (IF: 193 e 194), pois as máquinas trabalham de uma forma pré-estabelecida que determina um resultado. Se este resultado não é atingido, então sabemos que a máquina não está funcionando bem e trocamos as peças defeituosas para que ela volte a dar os resultados esperados.

No TLF a correção da linguagem se dá por um aspecto externo: o uso da linguagem lógica. Já nas IF, a correção se dá pelas práticas que ordenam o uso de determinadas regras. No entanto, estas regras não são tão rígidas quanto as da Matemática. Elas são muito diversas e estão relacionadas a treinos, hábitos e costumes (IF: 198 e 199). “Uma regra se apresenta como um indicador de direção” (IF: 85); as práticas (treinos, hábitos e costumes) nos orientam no modo como devemos usar uma regra que depende de como as coisas estão arranjadas numa determinada situação e, também, de como se assimilou a linguagem para se responder à situação de tais e tais maneiras. Desse modo, não há nada de misterioso em seguir regras, “seguir regras é uma práxis” (IF: 202), basta perceber como as coisas estão arranjadas na vida comum.

Propositadamente, é dado um caráter vago à noção de regras que está no espírito do que significa elucidação para Wittgenstein nas IF: “a elucidação é uma espécie de moldura aparente que nada contém” (IF: 217). Intuitivamente, penso que seguir regras não seja algo tão vago, mas certamente não possui uma clareza conceitual que muitos gostariam que tivesse.

Um primeiro aspecto de seguir regras está relacionado a normas públicas que se fazem através de acordos. Não há, realmente, nada de misterioso neste aspecto, basta ativarmos nossos sensos práticos para entender o que Wittgenstein quer dizer. Já nascemos dentro de relações sociais que vão moldando as nossas decisões e os nossos espíritos. Pensar em como seria se essas contingências não tivessem acontecido é tentar imaginar um outro mundo que, talvez, não faça sentido para os nossos horizontes cognitivos.

Um segundo aspecto está relacionado ao que parece apontar para um naturalismo nas IF. Em 632, por exemplo, há uma clara alusão a processos fisiológicos que apontam para algo verdadeiro. Wittgenstein chama a este processo de “Um jogo de linguagem importante”. Não seria forçoso associar JL com seguir determinadas regras, pois em 224 Wittgenstein afirma que “A palavra conformidade e a palavra regra são aparentados”. A idéia de conformidade faz par com as idéias de consenso e de acordo, idéias estas que são importantes para entender o que seja um jogo. Desse modo, JL e seguir regras parecem evocar uma idéia naturalista da linguagem, ou seja, as nossas práticas de linguagem são encaminhadas e limitadas por uma natureza humana comum a todos nós. Isto é corroborado pelo aforismo 415 onde se lê:

“O que fornecemos são propriamente anotações sobre a história natural do homem; não são curiosidades, mas sim constatações das quais ninguém duvidou, e que apenas deixam de ser notadas, porque estão continuamente perante nossos olhos”. (grifo meu)

Algo que deixa de ser notado, mas que continuamente está perante os olhos é algo trivial, algo que é demasiadamente comum dentro de nossas expectativas. Se fossemos equipados com outra estrutura cognitiva e vivêssemos em outro tipo de mundo, os acontecimentos que consideramos triviais não fossem mais considerados assim. Para um pássaro é trivial voar e ele, suponho eu, deve conformar muitos dos seus hábitos nesta capacidade. Se o homem pudesse voar como um pássaro, expressões do tipo “fui voando para o meu trabalho” teriam uma outra conotação no nosso universo lingüístico. As trivialidades que nem percebemos criam, desse modo, um parâmetro para o uso de regras e , por causa disso, “sigo a regra cegamente” (IF: 219).

Este aspecto naturalista não se encontra no TLF, onde o homem é percebido como algo semelhante a uma máquina capaz de perceber os signos lógicos e aplicar a linguagem de forma pura e cristalina.



quinta-feira, 27 de maio de 2010

TEXTO PARA A2: LETRAS "Estão os Signifcados na Cabeça?"

Estão os significados na cabeça? *




ARAUJO, P.R.F.


* Este texto é baseado no clássico artigo de Hilary Putnam intitulado “Meaning of “Meaning”. Esse artigo aparece pela primeira vez em Mind, Language and Reality. Philosophical Papers, vol. 2. Cambridge, Mass., Cambridge University Press, 1975.



O referido artigo foi traduzido/arrumado visando fins didáticos. Favor não reproduzir e esperar publicação para eventual citação.


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-Será que nossas mentes determinam toda a realidade do mundo? Tentaremos mostrar que não. Para tanto, utilizaremos uma pequena estória de ficção científica. Para efeito dos seguintes exemplos de ficção científica, nós devemos supor que em algum lugar da galáxia há um planeta que nós chamaremos de Terra Gêmea. A Terra Gêmea é muito parecida com a Terra; inclusive, de fato, as pessoas da Terra Gêmea falam as línguas naturais que nós estamos acostumados. Ou seja, eles falam português, inglês, espanhol, francês etc. De fato, exceto em pouquíssimos aspectos, o leitor deve supor que a Terra Gêmea é exatamente como a Terra. Pode-se até supor que você possui uma cópia idêntica – um clone perfeito - na Terra Gêmea, se assim o desejar. Todavia, minha argumentação não depende disso.
Embora algumas pessoas da Terra Gêmea (por assim dizer, aquelas que se chamam de “brasileiros”, de “americanos”, de “canadenses”, de “ingleses”, de “franceses” etc.) falem, por exemplo, português ou inglês, existem, não surpreendentemente, umas poucas diferenças sutis, a serem descritas, entre o português falado na Terra Gêmea e o português padrão. Essas diferenças dependem elas mesmas de algumas peculiaridades da Terra Gêmea.
Uma dessas peculiaridades da Terra Gêmea é que o líquido chamado de “água” não é H2O, mas é um liquido diferente cuja fórmula química é muito longa e complicada. Eu, simplesmente, abreviarei essa fórmula química para XYZ. Considerarei que XYZ é indistinguível da água em condições normais de temperatura e pressão. Mais particularmente, o gosto de XYZ parece com o da água e mata a sede como a água. Também, considerarei que os oceanos, lagos e mares da Terra Gêmea contêm XYZ e não água, que chove XYZ na Terra Gêmea, que se utiliza XYZ para lavar os carros etc., etc. e etc...
Caso, em algum momento, uma nave espacial terráquea visitasse a Terra Gêmea, a suposição seria, num primeiro momento, que “água” possui o mesmo significado na Terra e na Terra Gêmea. A suposição seria corrigida quando fosse descoberto que “água” na Terra Gêmea é XYZ. Desse modo, a nave espacial terráquea reportaria algo assim:


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(1) Na Terra Gêmea, a palavra “água” significa XYZ.


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Simetricamente, se, em algum momento, uma nave espacial da Terra Gêmea visitasse a Terra, então a suposição seria, num primeiro momento, que a palavra “água” tem o mesmo significado na Terra Gêmea e na Terra. Essa suposição seria corrigida quando se descobrisse que “água” na Terra é H2O. Desse modo, a espaçonave da Terra Gêmea reportaria algo assim:


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(2) Na Terra , a palavra “água” significa H2O.


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Note que não há problema com as características do termo “água”. Simplesmente, o termo tem dois significados diferentes: no sentido em que o significado é usado na Terra Gêmea, o sentido de ÁguaTG, o que nós chamamos de “água” simplesmente não é água; enquanto o sentido em que é usado na Terra, o sentido de ÁguaT, o que na Terra Gêmea é chamado de “água” simplesmente não é água. ÁguaT, como entendemos aqui, é o conjunto de todos os agregados consistindo de moléculas de H2O, ou algo assim; ÁguaTG é o conjunto de todos os agregados consistindo de moléculas de XYZ, ou algo assim.
Agora, permita-nos voltar no tempo até 1750. Naquela época, a química não era desenvolvida nem na Terra e nem na Terra Gêmea. O terráqueo típico não sabia que a água consistia de hidrogênio e oxigênio; do mesmo modo, o habitante típico da Terra Gêmea não sabia que “água” consistia de XYZ. Aceite que Oscar1 seja esse tal terráqueo típico; aceite, também, que Oscar2 seja a contra-parte de Oscar1 na Terra Gêmea. Você pode supor que não há nenhuma crença que Oscar1 tenha sobre água que Oscar2 não tenha sobre “água”. Se você preferir, você pode mesmo supor que Oscar1 e Oscar2 sejam duplicatas exatas em aparência, sentimentos, pensamentos, identidade interior, etc.
Ainda mais, você pode supor que o significado de “água” fosse um tanto igual à H20 na Terra, tanto em 1750 quanto em 1950; e o significado do termo “água” fosse um tanto igual à XYZ na Terra Gêmea, tanto em 1750 quanto em 1950. Oscar1 e Oscar2 entendiam o termo “água” diferentemente em 1750, a despeito deles estarem no mesmo estado psicológico. Embora a Química em 1750, tanto na Terra quanto na Terra Gêmea, não soubesse a composição do termo “água”, os significados eram diferentes. Assim, o significado do termo “água” não é a mesma coisa que o estado psicológico do falante quando ele vê água a sua frente.
Porém, pode-se objetar: por que deveríamos aceitar que o termo “água” tem o mesmo significado em 1750 e em 1950 (na Terra e na Terra Gêmea)? Essa pergunta é complicada; usarei um exemplo para tentar respondê-la.
Suponha que eu aponte para uma garrafa de água e diga “este líquido é chamado de água”. Minha “definição ostensiva” de água tem a seguinte pressuposição empírica: uma certa massa de líquido, que eu estou apontando, sustenta uma certa relação de semelhança para a maior parte das coisas que eu e os outros falantes, na minha comunidade lingüística, temos chamado de “água” em diversas ocasiões. Mas essa pressuposição pode ser falsa porque, pode acontecer, d’eu estar apontando para uma garrafa de álcool e não para uma de água; nesse caso, eu não pretendo que a minha definição ostensiva seja aceita. Desse modo, a definição ostensiva carrega o que pode ser chamado de uma condição necessária e suficiente de “mesmidade” (nesse caso, aponto para um líquido que acredito ser o mesmo que água): a condição necessária e suficiente para ser água é sustentar a relação de “mesmidade” com relação à coisa na garrafa; mas essa é uma condição necessária e suficiente somente se a pressuposição empírica for satisfeita. Se ela não for satisfeita, deveremos, então, retroceder nossas análises fazendo uma revisão geral.
O ponto chave é que a relação de “mesmidade” é uma relação teórico-científica: se algo é ou não é o mesmo líquido como este, isso pode envolver uma quantidade indeterminada de investigação científica a definir. Além disso, mesmo se uma resposta definitiva tenha sido obtida ou por meio de investigação científica, ou por meio da aplicação de algum teste de senso comum, a resposta pode ser anulável: investigações futuras poderiam contrariar o exemplo mais confiável. Assim, o fato de que alguém em 1750 pudesse ter chamado XYZ de “água”, enquanto ele ou seus sucessores poderiam não ter chamado XYZ de água em 1800 ou em 1850, não significa que o significado de “água” mudou para o falante médio nesse intervalo de tempo. Em 1750, em 1850 ou em 1950 poder-se-ia ter apontado para, por exemplo, o líquido do Oceano Atlântico como um exemplo de “água”. O que mudou foi que, em 1750, nós poderíamos, erroneamente, ter pensado que XYZ sustentava as relações de “mesmidade” para com o líquido no Oceano Atlântico, enquanto em 1800, ou em 1850, nós poderíamos ter o conhecimento de que isso é falso.
Antes de terminar, permita-me introduzir um exemplo que não seja de ficção-científica. Suponha que você seja como eu e não consiga distinguir um coelho de uma lebre. Ainda assim, podemos afirmar que o que entendo por coelho no idioma português é o mesmo que se entende por “coelho” em qualquer outro idioma. No meu caso, o conjunto de todos os coelhos e de todas as lebres têm o mesmo significado. Mas sabemos que coelho e lebre são dois tipos de animais. Assim, faz sentido pensar que essa diferença aconteça somente porquê os conceitos são diferentes? Ou é o mundo que sustenta a diferença de conceitos?
Minha concepção – e muito provavelmente a do leitor deste artigo - de coelho é exatamente a mesma da de lebre (envergonho-me em confessar). Se alguém heroicamente tentar sustentar que a diferença entre coelho e lebre seja explicada por uma diferença no meu estado psicológico ou mental, então nós poderemos sempre refutá-lo construindo um exemplo de Terra Gêmea.
Mais ainda, posso supor que eu tenha um clone idêntico na Terra Gêmea que seja molécula à molécula “idêntico” a mim (no sentido em que duas gravatas podem ser idênticas). Ainda mais, podemos supor que o meu clone pense os mesmos pensamentos verbalizados que eu penso, tenha os mesmos dados dos sentidos, as mesmas disposições, etc. É absurdo pensar que o seu estado psicológico seja um pouco diferente do meu: contudo, ele pode querer dizer lebre quando ele diz coelho e eu posso querer dizer coelho quando eu digo coelho.
Podemos supor, depois disso tudo, que é difícil sustentar que os significados estejam exclusivamente na cabeça!

TEXTO PARA A2: ADMINISTRAÇÃO "A Ética Empresarial"


LINK PARA O TEXTO:




A ÉTICA EMPRESARIAL


quarta-feira, 5 de maio de 2010

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA (C2): FILOSOFIA MODERNA

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA MODERNA

INTRODUÇÃO

Existe um certo consenso de que a FILOSOFIA MODERNA [1] começa, de fato, no século XVII, mais especificamente com a filosofia de RENÉ DESCARTES (1596-1650) [2]. Mais controverso é estabelecer o fim da modernidade. Costuma-se demarcar o fim da modernidade com o fim do século XIX, mais especificamente com a filosofia de FRIEDRICH NIETZSCHE (1844-1900). Desse modo, consideraremos que a Filosofia Moderna começa no século XVII e termina no século XIX. Importante ressaltar que a "periodização" da Filosofia em três períodos (Filosofia Antiga, Filosofia Medieval e Filosofia Moderna) foi estabelecida por GEORG WILHELM FRIEDRICH HEGEL (1770-1831). Essa periodização é didaticamente útil como um primeiro ponto de apoio.

René Descartes

Outro ponto de apoio importante para entender a Filosofia Moderna é perceber os acontecimentos históricos que estruturaram a modernidade. Destacaremos três acontecimentos que serviram de pano de fundo para o pensamento moderno: o HUMANISMO RENASCENTISTA [3], a REFORMA PROTESTANTE [4] e a REVOLUÇÃO CIENTÍFICA [5].

I - RACIONALISMO versus EMPIRISMO

Como afirmado, RENÉ DESCARTES é considerado o primeiro filósofo tipicamente moderno. Podemos entender parte de sua filosofia como sendo uma resposta ao CETICISMO. Não obstante, DESCARTES é considerado, por vezes, um grande cético.
Uma das preocupações da filosofia cartesiana é justamente estabelecer uma ponte entre a mente e o mundo, ou seja, entre algo que sou "eu" e algo que não sou "eu", ou ainda, a tentativa é estabelecer uma ponte entre o mundo subjetivo e o mundo objetivo. Para tanto, Descartes recorrerá ao que ele chama de MÉTODO. Esse método visa criar um caminho para o conhecimento verdadeiro.
A partir do ARGUMENTO DO COGITO, [6] pode-se afirmar que os sentidos estruturam parte do nosso conhecimento do mundo externo, mas nossos sentidos não são guias confiáveis para afirmar que o mundo estruturado pelos nossos sentidos é de fato o mundo verdadeiro. Os sentidos (audição, olfato, paladar, tato, visão) costumam nos enganar. Não só isso, nossos sentidos podem ser considerados pífios quando se pensa na realidade complexa do mundo exterior. 


Para exemplificar isso, prestemos atenção na explicação que Morpheus oferece a Neo acerca do que seja a realidade. Essa explicação se encontra no filme MATRIX [7] de 2001. 
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Descartes é um dos principais representantes do racionalismo na modernidade. Resumidamente, podemos considerar que a epistemologia cartesiana - ou teoria do conhecimento cartesiana - é fortemente baseada em evidências consideradas apriorísticas. Exemplificando, para criar uma ponte confiável entre mente e mundo, o filósofo francês necessita não só do "eu" que pensa, ele necessita de Deus. Nesse momento, Descartes se apropria do Argumento Ontológico de Santo Anselmo: ver, neste Blog, o ARGUMENTO ONTOLÓGICO na postagem "INTRODUÇÃO À FILOSOFIA: FILOSOFIA MEDIEVAL" para mostrar a existência de Deus. 

Como sabemos, o Argumento Ontológico é supostamente um argumento a priori, no sentido de não necessitar do mundo externo para a sua comprovação.
O racionalismo cartesiano foi duramente criticado pelos empiristas. O EMPIRISMO [8] é a teoria do conhecimento - ou epistemologia - que defende que a experiência deve guiar o conhecimento. Experiência, aqui, pode ser entendida no sentido mais comum; é a experiência relacionada aos nossos sentidos: audição, gustação, olfato, paladar e tato. Ou seja, o conhecimento passa pelos sentidos. Assim, a Filosofia Moderna pode ser entendida como um embate entre RACIONALISMO VERSUS EMPIRISMO.
A escola empirista fou muito influente na Inglaterra. Dois dos seus maiores representantes foram JOHN LOCKE (1632-1704) e DAVID HUME (1711-1776). Para LOCKE [9], não existem ideias soltas. Por ideias soltas, entenda-se ideias inatas as quais prescindem da experiência. Toda ideia, para os empiristas, vem do mundo sensível. Nesse sentido, a mente é como uma "tabula rasa", ou uma folha em branco, que vai sendo preenchida pela experiência. Todavia, a mente possui uma estrutura capaz de trabalhar esses dados dos sentidos por meio da reflexão. De certo modo, o manuseio desses dados é semelhante ao método cartesiano, visto anteriormente.
Locke discorda veementemente do "eu" do conhecimento cartesiano. Para o filósofo inglês, o sujeito que pensa não é a "medida de todo o conhecimento". Ou seja, existem qualidades no mundo que independem da percepção subjetiva. Por conta disso, Locke divide as qualidades em primárias e secundárias.
As QUALIDADES PRIMÁRIAS são qualidades objetivas, no sentido de serem qualidades inerentes ao objeto. Exemplos desse tipo de qualidade: forma, extensão e volume. Assim, o tamanho do planeta Terra aponta para uma medida objetiva, essa independe da estrutura sensória do sujeito.
As QUALIDADES SECUNDÁRIAS são qualidades subjetivas, no sentido de serem qualidades inerentes a um sujeito específico. Exemplos desse tipo de qualidade: cor (visão), odor (olfato), textura (tato) e sabor (gustação). Assim, se o gosto do alho é bom ou ruim, isso depende da percepção gustativa - gosto - de quem prova. As Qualidades Secundárias dependem da relação sujeito e objeto.
DAVID HUME [10] outro importante representante do empirismo, também acha que as ideias nascem da experiência sensível. Analisaremos três maneiras de como Hume ataca o racionalismo cartesiano. O filósofo escocês ataca Descartes mais diretamente com relação ao "eu" cartesiano, que chamaremos de a Teoria da Identidade Pessoal Cartesiana. A outra crítica diz respeito às ideias complexas que pode ser considerada uma crítica a apriorismos (ideias a priori) que rementem ao Argumento Ontológico. Vimos que Descartes também se utiliza do Argumento Ontológico para "salvar" a realidade externa. Por fim, Hume ataca a ideia de causalidade - causa e efeito - tão importante na compreensão do mundo. Mais acuradamente, o "eu" cartesiano não passa de um feixe de percepções em que as percepções sensíveis mudam constantemente. Assim, não existe um "eu" puro ou um pensamento puro.
Com relação às ideias complexas - como a ideia contida no Argumento Ontológico de Santo Anselmo de que "Deus é aquele do qual nada maior pode ser pensado" -, Hume achava que essas eram derivações de ideias simples, apreensíveis por meio de experiências simplórias. Por exemplo, a ideia de infinito advém da ideia de unidade, a qual origina quantidades, as quais, por sua vez, quando maximizadas, originaram a ideia do infinito.
Por fim, a causalidade, para HUME, não está no mundo. A causalidade é apenas um hábito mental que só psicologicamente estrutura o mundo. Assim, afirmar que "o sol nascerá amanhã" é uma sentença baseada num hábito, num costume de se perceber isso preteritamente. Ou, na melhor das hipóteses, essa afirmação pode ser considerada, no máximo, como altamente provável, mas não pode ser considerada de fato um conhecimento verdadeiro.
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II - CONTRATUALISMO MODERNO


Outro importante aspecto da Filosofia Moderna foi o pensamento político. O pensamento político moderno tende a aceitar o individualismo, a livre iniciativa e a liberdade individual. Assim, o homem será considerado o elemento estruturador da Filosofia Política. Para tanto, se recorrerá à ideia duma natureza humana que possui elementos considerados instintivos e elementos, digamos, sociais.
Por que o homem vive em sociedade? Essa pergunta norteará parte dos trabalhos dos três contratualistas que veremos a seguir. THOMAS HOBBES (1588-1679) [11], JOHN LOCKE (1632-1704) [12] e JEAN-JACQUES ROUSSEAU (1712-1778) [13] são considerados os três contratualistas clássicos.
A principal obra política de THOMAS HOBBES é "O LEVIATÃ", escrita em 1651. Nessa obra, Hobbes estrutura boa parte do seu contratualismo no individualismo e no egoísmo humanos.
O individualismo, em termos gerais, aponta para, pelo menos, três elementos:

1) os interesses individuais estão acima dos interesses sociais
2) existem direitos individuais
3) a liberdade humana

Para Hobbes, a natureza humana é essencialmente egoísta e com fortes inclinações para a maldade. Essa natureza belicosa impede que os homens confiem um nos outros, criando um clima de instabilidade e isegurança, porque o "homem é o lobo do homem". No Estado de Natureza - situação hipotética que imagina a pré-formação do Estado -, tal como imaginado pelo filósofo inglês, não há leis e um soberano que demande ordem. Nessa situação, os homens vivem de acordo com suas próprias inclinações ou paixões; todavia, os interesses humanos constantemente entram em conflito. Como não há leis no Estado de Natureza, a tendência das pessoas e dos grupos que querem a todo custo realizar os seus desejos é partir para a guerra. Uma "guerra de todos contra todos". Assim, para Hobbes, o Estado de Natureza é igual ao Estado de Guerra.
Psicologicamente, a guerra é insuportável para a maioria das pessoas por causa da eminência da morte violenta. Supõe-se, aqui, que todos queiram, instintivamente, preservar a qualquer custo a própria vida. Desse modo, o indivíduo busca evitar que ele próprio e seus amados morram violentamente. Sendo assim, faz-se necessário sair do Estado de Natureza. Para tanto, será necessário um contrato ou um pacto social. Nesse, se estabelecerão leis e normas para impedir a violência sem limites. Nesse novo arranjo, o assassinato será legalmente punido e isso, supõe-se, inibirá a matança generalizada.
O contrato hobbesiano estabelece que se ganhe a cidadania abrindo-se mão de uma liberdade sem limites. O cidadão perde essa liberdade, mas ganha mais segurança. Assim, o cidadão deve procurar a paz e, também, deve defender-se. A manutenção dessa paz é feita por um soberano absoluto, ou seja, um soberano possuidor não só de amplos poderes políticos, ele também tem o poder de intervir na vida dos seus súditos.
Outro contratualista, o inglês JOHN LOCKE discordará em muitos aspectos do pensamento de Hobbes. A principal obra de LOCKE se chama "DOIS TRATADOS SOBRE O GOVERNO", escrita em 1690. Nessa obra, Locke estruturou, entre outros, o que ficou conhecido como o pensamento liberal clássico. Também, nessa obra foi defendida a secularização do poder e se criticou o direito divino dos reis.
Locke não acreditava que o homem fosse necessariamente mal. Também, para Locke o Estado de Natureza não é necessariamente igual ao Estado de Guerra, como pensava Hobbes. O grande problema do Estado de Natureza é que ele pode se transformar num Estado de Guerra por causa da vingança desproporcional. Assim, o Estado de Natureza pode se tornar contrário às duas leis naturais formuladas por Locke: não destruir a si próprio e não causar dano a outros. A partir desse JUSNATURALISMO [14], ou dessas leis naturais, é articulado o contrato social. O contrato visa proteger os bens humanos que, na concepção lockeana, são a vida, a liberdade e a propriedade.
Enfim, para Locke a sociedade civil deve ser um aperfeiçoamento do Estado de Natureza, no sentido de preservar os direitos naturais. Para tanto, o contrato deve assegurar a defesa dos bens humanos.
Por fim, para o filósofo suiço JEAN-JACQUES ROUSSEAU o homem é naturalmente bom; ou seja, a natureza humana é essencialmente boa. O que corrompe o homem é a desigualdade encontrada na sociedade. Desse modo, o Estado de Natureza não é uma "guerra de todos contra todos", pelo contrário, nesse estado o homem vive feliz e perfeitamente integrado à natureza. A sociedade civil tanto é melhor quanto mais ela conseguir preservar a liberdade encontrada no Estado de Natureza. Para ROUSSEAU, o contrato social visa submeter todos à Vontade Geral que conduzirá ao bem comum.
Podemos perceber que HOBBES e ROUSSEAU possuem algumas ideias antagônicas acerca da natureza humana. Mais, enquanto Hobbes é um absolutista, Rousseau é um ferrenho defensor da democracia.
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III - OS ALEMÃES E A CRÍTICA À TRADIÇÃO FILOSÓFICA

No fim da modernidade, alguns filósofos não só fizeram críticas ao modo de como se fazia filosofia, mas também ao papel da filosofia. Pegaremos três filósofos emblemáticos, todos alemães, para exemplificar essas críticas: IMMANUEL KANT (1724-1804) [15], KARL MARX (1818-1883) [16] e FRIEDRICH NIETZSCHE (1844-1900) [17]. Importante ressaltar que o pensamento desses três filósofos influenciará grandemente o século XX e esse início de século XXI. Basta lembrar que o marxismo influenciou a REVOLUÇÃO RUSSA [18] e seus desdobramentos; ainda hoje, a Revolução Russa inspira muitos projetos políticos e sociais. Os escritos de Nietzsche inspiraram o EXISTENCIALISMO [19]. Já a ética kantiana é fortemente aceita e discutida nos dias atuais. [20]
A ética kantiana é encontrada em obras como "FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES" [21] de 1785. Para Kant, a Filosofia Moral está no domínio da razão prática, caracterizada pelo uso da liberdade. Ou seja, a moralidade só é possível porque somos livres. Todavia, essa liberdade é racional e universal; universal no sentido de valer para todos os seres racionais. A racionalidade exige certos deveres que funcionam como regras da razão prática. Essas regras são Imperativos - ou mandamentos da razão - , divididos em IMPERATIVOS CATEGÓRICOS e IMPERATIVOS HIPOTÉTICOS. Enquanto o Imperativo Categórico (IC) ordena uma lei moral que vale para todos, o Imperativo Hipotético (IH) encaminha uma ação possível para determinada finalidade; melhor, enquanto o Imperativo Categórico é uma lei objetiva advinda da razão prática, o Imperativo Hipotético é algo subjetivo, mais ligado aos interesses do agente. Exemplo: O IC ordena que sempre falemos a verdade, mesmo que isso acarrete em algo ruim para o agente; já o IH pode apontar para a mentira, principalmente quando falar uma mentira pode implicar em benefícios para o agente.
Nota-se que a ética kantiana - também conhecida por ética deontológica - faz uma certa separação entre moralidade e as inclinações do agente. Essas inclinações ou desejos são fortemente influenciadas pela busca do prazer. Essa busca pelo prazer está fortemente relacionada com as várias noções de felicidade existentes. Desse modo, Kant faz uma separação entre moralidade e felicidade. Ou seja, superficialmente falando, ser moral não implica em ser feliz e vice-versa.
KARL MARX, outro filósofo alemão, criticará a tradição filosófica por um viés, digamos, político. Para ele: "Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo". Essa citação, encontrada na obra "XI Tese sobre Feuerbach" [22], pode ser compreendida como uma crítica que os filósofos modernos deram para questões epistêmicas e metafísicas. Podemos entender que Marx ressaltará o papel político da atividade filosófica.
Entre as obras de Marx estão o MANIFESTO COMUNISTA [23], A IDEOLOGIA ALEMÃ [24] e a obra O CAPITAL [25]. Nessas obras, encontramos críticas a um tipo de filosofia chamada de idealista. Marx critica esse tipo de filosofia por considerar que o idealismo não leva a sério as bases materiais. Por bases materiais, entenda-se os modos de produção econômico como o primitivo, o escravista, o feudal, o capitalista etc.
Outros importante aspecto da filosofia marxista é a noção de IDEOLOGIA [26]. Segundo Marx, as classes dominantes criam uma ideologia - ou falsa realidade - para justamente dominar as classes mais baixas ou menos favorecidas. O desmascaramento ideológico se faz por meio do pensamento crítico. Desse modo, o papel da Filosofia, entendida aqui como Filosofia Crítica, é desmascarar a ideologia. Esse desmascaramento é importante porque propiciará a revolução. Nessa revolução, a classe mais baixa - o proletariado - tomará consciência da sua situação se lançando numa LUTA DE CLASSES [27], visando se apropriar dos meios de produção. Resumidamente, a liberdade política só é alcançável por cidadãos não alienados de sua condição desfavorável; esse apercebimento levará à luta de classes que culminará com a Revolução.
Por fim, FRIEDRICH NIETZSCHE [28] identificou na tradição filosófica moderna dois elementos vindos da cultura grega. Para ele, os espíritos dos deuses Apolo e Dioniso nortearam a filosofia. Para Nietzsche, Apolo representa, entre outros, o equilíbrio, a ordem, a razão; já Dioniso representa, entre outros, a emoção, a embriaguez, a música. A partir dessas caracterizações, Nietzsche entendeu que a Filosofia Moderna representa a vitória do espírito apolíneo sobre o dionisíaco. Todavia, essa vitória não é bem vista porque o espírito apolíneo destrói a criatividade humana. A derrota de Dioniso é a derrota do voluntarismo humano, é a derrota da vida.
Assim, a crítica nietzscheana à Filosofia Moderna está relacionada com a supressão do caráter, digamos, mais intuitivo, criativo e contestador do fazer filosófico. Nietzsche identifica na tradição grega um culpado para a derrota do espírito dionisíaco: Sócrates. O mestre de Platão privilegiou demasiadamente a razão, afastando qualquer traço de espontaneidade criativa do fazer filosófico e, com isso, a filosofia socrática e seus adeptos se afastaram da natureza.
Resumidamente, podemos apreender que o pensamento de Nietzsche é fortemente vitalisata, ou seja, a vida é o mais importante. Com isso, ele entende que a moralidade apenas limita a vida. A moral nada mais é do que um instrumento usado pelos fracos - os negadores da vida - para dominar os mais fortes - ou aqueles que afirmam a vida. Melhor, vidas decadentes se utilizam da moral para combater covardemente vidas ascendentes. Como exemplo de vida decadente, Nietzsche cita o modo de vida cristão.


NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


[1] Para um entendimento melhor sobre os aspectos históricos que cercaram a Filosofia Moderna, recomenda-se a obra: História da Filosofia Moderna, organizada por  Giulia Belgioioso. 

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[2] Uma obra interessante que aborda vários aspectos do pensamento cartesiano é: Descartes, organizada por  John Cottingham. 
  • COTTINGHAM, John (org.). Descartes. Ed: Ideias e Letras, 2009. 
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[3] Sobre o Humanismo Renascentista, sugere-se a apreciação da obra: Renascimento e Humanismo de Teresa van Acker. 
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