domingo, 2 de fevereiro de 2014

UTILITARISMO


UTILITARISMO

PRAZER, FELICIDADE E CONSEQUENCIALISMO


John Stuart Mill, um dos principais representantes do utilitarismo, enunciou assim a sua ética:
O credo que aceita a utilidade ou o princípio da maior felicidade como a fundação da moral sustenta que as ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o contrário da felicidade. [1]
O enunciado acima (MILL, 2000, p.187) ficou conhecido como o Princípio Fundamental do Utilitarismo (PFU). Desse princípio, podemos inferir que o utilitarista acredita que a felicidade é, tal como na Ética das Virtudes, o maior bem humano porque as pessoas guiam suas ações visando alcançá-la. Por conta disso, a ética utilitarista é chamada de teleológica, ou seja, é uma ética que visa a um objetivo, uma finalidade que é, justamente, a vida feliz.



                                                                                           John Stuart Mill


Comumente, se pensa que a felicidade seja algo prazeroso ou que está relacionada ao prazer. A busca pelo prazer é considerada uma atitude hedonista. Por conta dessa relação entre felicidade e prazer, a versão mais conhecida do utilitarismo é o “utilitarismo hedonista”, segundo o qual o prazer serve como uma espécie de padrão para saber se uma ação é correta ou não. Obviamente, utilizar somente o prazer como medida do certo e do errado parece insuficiente, pois há ações consideradas prazerosas que, primeiro, possuem nenhum conteúdo moral e, segundo, são consideradas imorais. No primeiro caso, podemos citar o prazer sexual ou os prazeres etílicos que aparentemente possuem nenhum conteúdo moral. No segundo caso, podemos citar o exemplo do torturador que sente imenso prazer em machucar pessoas.
Por causa desses inconvenientes advindos do hedonismo, Mill reformulou alguns aspectos do utilitarismo visando, entre outros, minimizar o caráter meramente hedonista associado ao utilitarismo. Para tanto, o filósofo inglês introduziu alguns elementos que tornaram o utilitarismo 
menos desprotegido com relação às críticas anti-hedonistas. Destacaremos dois elementos apenas [2]:

Primeiro: a importância do cultivo do caráter virtuoso para se atingir a felicidade. Nesse sentido, podemos perceber certa relação entre o utilitarismo e a ética das virtudes.

Segundo: a qualificação dos prazeres, entre prazeres sensíveis, ou corporais, e prazeres intelectuais. Mill defende que a verdadeira felicidade, ou a felicidade de maior nível, está relacionada aos prazeres intelectuais. Por conta disso, o autor da obra “Utilitarismo” (1861) afirmou (MILL, 2000, p. 191):


"É melhor ser uma criatura humana insatisfeita do que um porco satisfeito; é melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito. E se o tolo ou o porco têm opinião diversa, é porque conhecem apenas um lado da questão: o seu. A outra parte, em compensação, conhece os dois lados." [3]


Pelo PFU também podemos entender que o agente moral presta atenção para as consequências de suas ações, pois “ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o contrário da felicidade”. Por isso, o utilitarismo é considerado uma ética consequencialista, ou seja, a ação correta leva em conta o resultado ou as consequências de uma ação. Assim, o consequencialismo é contrário à ética deontológica de cunho kantiano, pois, para Kant, a ação correta não leva em conta as consequências da ação, mas sim, predominantemente, a intenção do agente que age por dever seguindo o Imperativo Categórico.
Atualmente, o consequencialismo possui forte apelo por dois motivos: é simples para qualquer um entender e aceitar que as ações praticadas possuem consequências e essa percepção é, inclusive, um importante elemento de inserção social. Também, quando pensamos em responsabilidade moral, essa comumente se encontra associada à capacidade do agente perceber as eventuais consequências de sua ação. Por isso dirigir embriagado é algo condenável juridicamente e mesmo moralmente, porque se considera que o motorista bêbado é capaz de perceber as eventuais consequências desastrosas do seu ato, sendo, por isso, um agente responsabilizável ou, em termos mais jurídicos, imputável.
Podemos, agora, entender a relação estreita que o PFU estabelece entre o hedonismo e o consequencialismo. Essa relação se dá pela maximização da felicidade, segundo a qual a atitude correta deve ter como consequência a maior felicidade geral possível. Nesse sentido, uma ação é 
considerada boa ou má na medida em que ela aumenta ou diminui a felicidade geral. Num primeiro momento, parece óbvio que uma ação qualquer causadora de bem estar para dez pessoas é melhor do que uma outra ação semelhante que causou o bem estar para apenas uma pessoa.
Todavia, o princípio da maximização da felicidade também possui sérios problemas que podem ser percebidos por meio de experimentos de pensamento. Imagine que um louco homicida deseja dominar o mundo e para alcançar esse objetivo ele promove diversos atentados. Se sabe que um desses atentados tem o poder de matar milhões de seres humanos. O louco faz o seguinte acordo: ele promete não soltar a bomba se dez crianças quaisquer forem sacrificadas com requintes de crueldade [4]. Pelo princípio da maximização, o cálculo utilitarista apontaria para o sacrifício das dez crianças; todavia, isso parece ferir profundamente as nossas mais profundas convicções morais. Alguém pode argumentar que esse experimento de pensamento é por demais ficcional e dramático. Não obstante, parece fácil perceber que a maximização da felicidade pode acarretar em algo considerado imoral.
Até agora, ressaltamos três características gerais do utilitarismo: teleologia, hedonismo e consequencialismo. Há mais duas outras características que ressaltaremos brevemente: a universalização da ética utilitarista e a ideia de que as pessoas são iguais.

O caráter universal do utilitarismo possui dois aspectos: o primeiro que o ser humano é guiado por “dois senhores”, a dor e o prazer. Ou seja, TODOS os seres humanos tendem a buscar o prazer e evitar a dor. O outro aspecto da universalização está relacionado com a maximização do prazer; nesse, a ética utilitarista defende que a ação correta deve proporcionar a felicidade para um maior número de pessoas. Mas o que significa proporcionar a felicidade para um maior número de pessoas?
Uma leitura possível disso é que a ética utilitarista defende que devemos buscar, como um objetivo norteador, a felicidade de todas as pessoas do mundo; ou seja, a expressão “o maior número de pessoas” toca na universalidade desse número de pessoas. Obviamente, esse tipo de universalização exige certos poderes do agente que, no mínimo, são controversos: a sapiência do agente com relação às consequências futuras de seu ato, que normalmente não estão sob o seu controle, e uma espécie de abnegação da própria vida em prol da felicidade alheia.
Exemplificando, no primeiro caso parece óbvio que nossos poderes cognitivos não conseguem estruturar devidamente uma epistemologia adequada para saber as eventuais consequências do aqui e agora. Por conta da diversidade das concepções de bem, o ato bom de alguém pode, por exemplo, salvar a vida de um assassino serial (serial killer), o que será bom para o assassino, para sua família e para alguns amigos desse assassino. Todavia, o salvamento da vida desse assassino implicará na morte de dezenas de pessoas e a tristeza de outras tantas.
No segundo caso, com relação à abnegação da própria vida, parece necessário pensar que a busca pela maior felicidade implica que alguém se desfaça de bens próprios em prol dos mais necessitados. Desse modo, a universalização utilitarista parece demandar que alguém que possua alguns bens, como uma casa, um carro e algum dinheiro, abra mão de tudo isso para auxiliar quem se encontra em condições precárias. No limite, isso implicaria numa vida devotada ao bem dos outros.
A igualdade utilitarista está intimamente relacionada com a ideia do respeito igual para os seres sensientes. O que são seres sensientes? São seres capazes de sofrer prazeres e dores físicas ou psicológicas. Nesse sentido, a ética utilitarista se estende para além dos seres humanos, se aplica também para os animais não humanos. O princípio da igualdade defendido pelo utilitarista segue a seguinte lógica: todos os seres sensientes, notadamente os que possuem um sistema nervoso central, são capazes de sentir dor. Por conta disso, todos os seres sensientes são iguais com relação à sensação da dor e, por conseguinte, com relação à busca pelo prazer. Assim, a natureza dessas sensações possui uma base física comum a todos os seres sensientes, exigindo considerações éticas de cunho igualitário.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


[1] MILL, John Stuart. A liberdade / Utilitarismo. Tradução: Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Coleção Clássicos: Filosofia).
[2] Para uma análise mais apurada da concepção de Mill sobre o utilitarismo, ver:
BORGES, Maria de Lourdes et al. Ética. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
[3] MILL, John Stuart. A liberdade / Utilitarismo. Tradução: Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Coleção Clássicos: Filosofia).
[4] Experimentos de pensamento não precisam fornecer todos os dados da situação proposta. O mais importante, é que o leitor tenha uma atitude a mais benevolente possível para aceitar o funcionamento do experimento.
No caso proposto, para que o experimento funcione tem que se aceitar que, por exemplo, não há um “herói” que salvará o mundo, que o louco homicida é realmente mau ou que o louco homicida, apesar de ser louco, vai cumprir o que prometeu.