domingo, 8 de agosto de 2010

Wittgenstein: o Tractatus Logico-Philosophicus (TLF) e as Investigações Filosóficas (IF)

Uma pequena análise da Filosofia da Linguagem de Wittgenstein





Este texto é uma tentativa de capturar o projeto de Ludwig Wittgenstein(1889-1951) contido no Tractatus Logico-Philosophicus (TLP), editado originalmente em 1921. Para tanto, resolvi comparar certos aspectos do TLP com outra importante obra de Wittgenstein intitulada Investigações Filosóficas (IF), publicada, após a sua morte, em 1953.

Apesar de, comumente, a obra IF possuir o status de obra madura com relação ao TLP, penso que esse último é filosoficamente mais interessante. Ainda mais, podemos entender que os projetos contidos na TLP e nas IF possuem interesses distintos sobre o funcionamento da linguagem. Enquanto o TLP esbarra em questões metafísicas, epistemológicas e lógicas de difícil trato, a pretensão nas IF é descrever como de fato nós usamos a linguagem. Obviamente, o nível lógico-metafísico e o pragmático podem possuir pontos de contato, mas são abordagens diferenciadas para um mesmo fenômeno que é a linguagem.

No TLF, Wittgenstein está preocupado com as relações entre linguagem e mundo. Para ele, essa relação se dá através da teoria da figuração. Há, nessa teoria, a concepção de que o pensamento representa algo dos fatos do mundo. Como o pensamento se dá por meio de proposições, então as proposições representam, de alguma forma, o mundo. No aforismo 2.12, encontramos a seguinte passagem: “a figuração é um modelo da realidade”. Esse modelo é como uma foto ou uma espécie de maquete que usamos para representar e tentar capturar o real, capturar o mundo. A figuração (foto ou maquete) possui, então, uma relação com a realidade (TLF: 2.14, 2.15, 2.151, 2.1514, 2.161 e 2.17). Essa relação é estruturada logicamente pelas proposições. Desse modo, entender a linguagem – que significa entender o mundo – é compreender as regras da lógica que estão escondidas embaixo de uma gramática de superfície que é a gramática usada cotidianamente.

Há no TLF uma correspondência entre a estrutura do mundo e a estrutura da linguagem. A partir do que Wittgenstein escreveu da sua teoria da figuração, é possível fazer uma associação precária entre mundo e linguagem. Em 2.131, Wittgenstein afirmou que “Os elementos da figuração representam nela os objetos”. Aqui, temos uma relação entre os elementos da figuração – que é uma estrutura da linguagem – e os objetos – que é uma estrutura do mundo; ou, Wittgenstein está preocupado em encontrar relações entre Semântica, Metafísica e Epistemologia. Todavia, resta descobrir o que são esses elementos da figuração correspondentes aos objetos. No aforismo 3.203, há a afirmação de que “O nome significa o objeto”, ou seja, os elementos da figuração parecem ser os nomes. Se isto está correto, então temos aqui duas estruturas se correspondendo: os nomes e os objetos. Essas parecem ser as estruturas mais simples da linguagem e do mundo e vão fundamentar, ao que parece, todas as outras estruturas contidas no TLF. Essas estruturas (estado de coisas, proposições, fatos) estão concatenadas por uma estrutura lógica, pois “A construção lógica é comum a todos” (TLF: 4.014 e 4.0141).

A relação entre nome e objeto é bem difícil de entender no TLF. Nas IF, Wittgenstein critica “o autor do TLF” (IF: 23) por não compreender que há vários usos para a linguagem, como usá-la para comandar, descrever, conjecturar, inventar uma história, representar teatro e outros. Mas o que isso significa?

Significa que não há apenas uma maneira de entender a linguagem, o que era uma forte tese no TLF (TLF: 3.201 e 3.25). Em algumas partes das IF, Wittgenstein faz críticas à teoria da nomeação (IF: 1 e 244) que parece ser a teoria adotada no TLF. Desse modo, no TLF a ligação entre nome e objeto se dá através da nomeação, ou seja, os nomes representam ou significam objetos. Desse modo, descobrir significados é entender a gramática profunda que subjaz as sentenças da gramática de superfície. Notar bem: a gramática profunda é percebida por meio do cálculo proposicional.

O cálculo proposicional pode ser entendido pelas regras da lógica que determinam uma única maneira de entender a linguagem. Assim, entender a linguagem significa entender as regras da lógica. Desse modo, basta admitir a notação lógica para ser forçosamente guiado pelas suas regras (TLF: 5.514) e encontrar o significado de determinada expressão. Nesse caso, somente expressões proposicionais podem ser analisadas, ou seja, podem ser passíveis de verdade ou falsidade (TLF: 4.022, 4.023 e 4.024). Forçosamente, as proposições têm que possuir alguma relação com o mundo; proposições que não fazem isso estão fora do interesse do TLF.

Como mostrado até aqui, há no TLF uma espécie de monismo lingüístico, ou seja, há uma única maneira de se entender a linguagem que é por meio de sua estrutura lógica. Nas IF, desaparece a teoria monista; nessa obra, Wittgenstein parece adotar uma teoria pluralista da linguagem. Não há mais uma lógica da linguagem, há uma multiplicidade de significados que se dão nas práticas lingüísticas de cada comunidade (IF: 1). Wittgenstein troca a análise lógica da linguagem pela noção de jogos de linguagem (JL) (IF: 7).

A noção de jogos de linguagem na IF é muito fluida e vaga, diferente da teoria da figuração encontrada no TLF, em que encontramos uma noção mais precisa, mesmo que muito abstrata. Pode-se afirmar que nas IF, diferente do TLF, para entender a linguagem é necessário entender os JL. No aforismo 65 das IF, Wittgenstein não busca mais uma essência da linguagem. No máximo, só podemos afirmar que os diversos JL têm um “parentesco”. Wittgenstein chega mesmo a afirmar que “não há uma coisa comum a esses fenômenos”, ou seja, aos JL. Para tentar exemplificar isto é usado um exemplo de como se jogam vários tipos de jogos (IF: 66). Nesse exemplo, se pretende mostrar que, intuitivamente, os vários tipos de jogos – desde os jogos de tabuleiro até os esportes – possuem algum parentesco, embora cada um deles tenha a sua autonomia. Este exemplo também nos esclarece que entender uma linguagem não é, como se queria no TLF, entender a sua forma lógica, mas participar de uma atividade que se articula com um Modo de Vida.

Enquanto no TLF existia a noção de que há uma gramática profunda que se oculta sob quilos e quilos de uma gramática superficial, nas IF não há essa dicotomia. A gramática nas IF não dita regras independentes das práticas coletivas, ela está situada dentro das atividades dos diversos JL. Esta gramática se dá de forma pública; ou seja, há nada para além dessa gramática. A abstração e o monismo semântico do TLF desaparecem. Usar corretamente a linguagem significa compreender o domínio público. Esse domínio não é algo oculto pairando para além das vontades e dos acordos humanos. Desse modo, Wittgenstein tira a linguagem dos céus e a coloca perto do contato humano, pois “Correto e falso é o que os homens dizem; e na linguagem os homens estão de acordo. Não é um acordo sobre as opiniões, mas sobre o modo de vida” (IF: 241). Nesse aforismo, Wittgenstein parece defender que uma verdade essencial da linguagem é uma quimera. O que há é um acordo entre as pessoas para que a linguagem tenha alguma utilidade pública, nada mais nada menos.

Entender a linguagem significa compreender o jogo ou os jogos de uma determinada comunidade lingüística. Compreender, neste sentido, significa, então, entender e dominar uma técnica – seguir uma regra (IF: 199) -, pois a linguagem ela mesma possui regras. No aforismo 185, é exposto o problema do menino que supostamente usa regras para escrever séries de números cardinais. Todavia, o aluno parece começar a aplicar as regras que o professor lhe ensinou de modo equivocado e, a partir daí, Wittgenstein começa a lançar alguns questionamentos que estão tácitos nos aforismos que lidam com esse problema: como pode alguém aprender uma regra? Como é possível alguém seguir esta regra? Onde estão os padrões que mostram que alguém está aplicando corretamente esta regra? Será que estes padrões se encontram na mente do agente ou será que são padrões socialmente aprendidos?

Como já visto, seguir as regras nas IF não é o mesmo que compreender as regras da lógica. Seguir as regras significa compreender os JL. As regras dos JL não são tão rígidas e monolíticas quanto poderíamos conceber no TLF. Neste há uma forte noção de acerto ou erro, associados a se fazemos asserções verdadeiras ou falsas acerca do mundo. Desse modo, a linguagem funciona de forma independente da vontade humana. Por isso, Wittgenstein afirma que “A totalidade das proposições verdadeiras é toda a ciência natural (ou a totalidade das ciências naturais)” (TLF: 4.11), ou seja, as proposições precisam ser verificadas empiricamente para que tenham algum sentido, é preciso saber se os fenômenos correspondem às afirmações proposicionais e às representações que fazemos deles. Wittgenstein chega a usar nas IF a imagem do funcionamento da máquina para atacar a concepção de linguagem contida no TLF (IF: 193 e 194), pois as máquinas trabalham de uma forma pré-estabelecida que determina um resultado. Se este resultado não é atingido, então sabemos que a máquina não está funcionando bem e trocamos as peças defeituosas para que ela volte a dar os resultados esperados.

No TLF a correção da linguagem se dá por um aspecto externo: o uso da linguagem lógica. Já nas IF, a correção se dá pelas práticas que ordenam o uso de determinadas regras. No entanto, estas regras não são tão rígidas quanto as da Matemática. Elas são muito diversas e estão relacionadas a treinos, hábitos e costumes (IF: 198 e 199). “Uma regra se apresenta como um indicador de direção” (IF: 85); as práticas (treinos, hábitos e costumes) nos orientam no modo como devemos usar uma regra que depende de como as coisas estão arranjadas numa determinada situação e, também, de como se assimilou a linguagem para se responder à situação de tais e tais maneiras. Desse modo, não há nada de misterioso em seguir regras, “seguir regras é uma práxis” (IF: 202), basta perceber como as coisas estão arranjadas na vida comum.

Propositadamente, é dado um caráter vago à noção de regras que está no espírito do que significa elucidação para Wittgenstein nas IF: “a elucidação é uma espécie de moldura aparente que nada contém” (IF: 217). Intuitivamente, penso que seguir regras não seja algo tão vago, mas certamente não possui uma clareza conceitual que muitos gostariam que tivesse.

Um primeiro aspecto de seguir regras está relacionado a normas públicas que se fazem através de acordos. Não há, realmente, nada de misterioso neste aspecto, basta ativarmos nossos sensos práticos para entender o que Wittgenstein quer dizer. Já nascemos dentro de relações sociais que vão moldando as nossas decisões e os nossos espíritos. Pensar em como seria se essas contingências não tivessem acontecido é tentar imaginar um outro mundo que, talvez, não faça sentido para os nossos horizontes cognitivos.

Um segundo aspecto está relacionado ao que parece apontar para um naturalismo nas IF. Em 632, por exemplo, há uma clara alusão a processos fisiológicos que apontam para algo verdadeiro. Wittgenstein chama a este processo de “Um jogo de linguagem importante”. Não seria forçoso associar JL com seguir determinadas regras, pois em 224 Wittgenstein afirma que “A palavra conformidade e a palavra regra são aparentados”. A idéia de conformidade faz par com as idéias de consenso e de acordo, idéias estas que são importantes para entender o que seja um jogo. Desse modo, JL e seguir regras parecem evocar uma idéia naturalista da linguagem, ou seja, as nossas práticas de linguagem são encaminhadas e limitadas por uma natureza humana comum a todos nós. Isto é corroborado pelo aforismo 415 onde se lê:

“O que fornecemos são propriamente anotações sobre a história natural do homem; não são curiosidades, mas sim constatações das quais ninguém duvidou, e que apenas deixam de ser notadas, porque estão continuamente perante nossos olhos”. (grifo meu)

Algo que deixa de ser notado, mas que continuamente está perante os olhos é algo trivial, algo que é demasiadamente comum dentro de nossas expectativas. Se fossemos equipados com outra estrutura cognitiva e vivêssemos em outro tipo de mundo, os acontecimentos que consideramos triviais não fossem mais considerados assim. Para um pássaro é trivial voar e ele, suponho eu, deve conformar muitos dos seus hábitos nesta capacidade. Se o homem pudesse voar como um pássaro, expressões do tipo “fui voando para o meu trabalho” teriam uma outra conotação no nosso universo lingüístico. As trivialidades que nem percebemos criam, desse modo, um parâmetro para o uso de regras e , por causa disso, “sigo a regra cegamente” (IF: 219).

Este aspecto naturalista não se encontra no TLF, onde o homem é percebido como algo semelhante a uma máquina capaz de perceber os signos lógicos e aplicar a linguagem de forma pura e cristalina.



Um comentário:

  1. Gostei do conteudo.Esta bem resumido mas estaria melhor se viesse bem claro o que sao jogos de linguagem

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