quinta-feira, 27 de maio de 2010

TEXTO PARA A2: LETRAS "Estão os Signifcados na Cabeça?"

Estão os significados na cabeça? *




ARAUJO, P.R.F.


* Este texto é baseado no clássico artigo de Hilary Putnam intitulado “Meaning of “Meaning”. Esse artigo aparece pela primeira vez em Mind, Language and Reality. Philosophical Papers, vol. 2. Cambridge, Mass., Cambridge University Press, 1975.



O referido artigo foi traduzido/arrumado visando fins didáticos. Favor não reproduzir e esperar publicação para eventual citação.


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-Será que nossas mentes determinam toda a realidade do mundo? Tentaremos mostrar que não. Para tanto, utilizaremos uma pequena estória de ficção científica. Para efeito dos seguintes exemplos de ficção científica, nós devemos supor que em algum lugar da galáxia há um planeta que nós chamaremos de Terra Gêmea. A Terra Gêmea é muito parecida com a Terra; inclusive, de fato, as pessoas da Terra Gêmea falam as línguas naturais que nós estamos acostumados. Ou seja, eles falam português, inglês, espanhol, francês etc. De fato, exceto em pouquíssimos aspectos, o leitor deve supor que a Terra Gêmea é exatamente como a Terra. Pode-se até supor que você possui uma cópia idêntica – um clone perfeito - na Terra Gêmea, se assim o desejar. Todavia, minha argumentação não depende disso.
Embora algumas pessoas da Terra Gêmea (por assim dizer, aquelas que se chamam de “brasileiros”, de “americanos”, de “canadenses”, de “ingleses”, de “franceses” etc.) falem, por exemplo, português ou inglês, existem, não surpreendentemente, umas poucas diferenças sutis, a serem descritas, entre o português falado na Terra Gêmea e o português padrão. Essas diferenças dependem elas mesmas de algumas peculiaridades da Terra Gêmea.
Uma dessas peculiaridades da Terra Gêmea é que o líquido chamado de “água” não é H2O, mas é um liquido diferente cuja fórmula química é muito longa e complicada. Eu, simplesmente, abreviarei essa fórmula química para XYZ. Considerarei que XYZ é indistinguível da água em condições normais de temperatura e pressão. Mais particularmente, o gosto de XYZ parece com o da água e mata a sede como a água. Também, considerarei que os oceanos, lagos e mares da Terra Gêmea contêm XYZ e não água, que chove XYZ na Terra Gêmea, que se utiliza XYZ para lavar os carros etc., etc. e etc...
Caso, em algum momento, uma nave espacial terráquea visitasse a Terra Gêmea, a suposição seria, num primeiro momento, que “água” possui o mesmo significado na Terra e na Terra Gêmea. A suposição seria corrigida quando fosse descoberto que “água” na Terra Gêmea é XYZ. Desse modo, a nave espacial terráquea reportaria algo assim:


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(1) Na Terra Gêmea, a palavra “água” significa XYZ.


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Simetricamente, se, em algum momento, uma nave espacial da Terra Gêmea visitasse a Terra, então a suposição seria, num primeiro momento, que a palavra “água” tem o mesmo significado na Terra Gêmea e na Terra. Essa suposição seria corrigida quando se descobrisse que “água” na Terra é H2O. Desse modo, a espaçonave da Terra Gêmea reportaria algo assim:


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(2) Na Terra , a palavra “água” significa H2O.


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Note que não há problema com as características do termo “água”. Simplesmente, o termo tem dois significados diferentes: no sentido em que o significado é usado na Terra Gêmea, o sentido de ÁguaTG, o que nós chamamos de “água” simplesmente não é água; enquanto o sentido em que é usado na Terra, o sentido de ÁguaT, o que na Terra Gêmea é chamado de “água” simplesmente não é água. ÁguaT, como entendemos aqui, é o conjunto de todos os agregados consistindo de moléculas de H2O, ou algo assim; ÁguaTG é o conjunto de todos os agregados consistindo de moléculas de XYZ, ou algo assim.
Agora, permita-nos voltar no tempo até 1750. Naquela época, a química não era desenvolvida nem na Terra e nem na Terra Gêmea. O terráqueo típico não sabia que a água consistia de hidrogênio e oxigênio; do mesmo modo, o habitante típico da Terra Gêmea não sabia que “água” consistia de XYZ. Aceite que Oscar1 seja esse tal terráqueo típico; aceite, também, que Oscar2 seja a contra-parte de Oscar1 na Terra Gêmea. Você pode supor que não há nenhuma crença que Oscar1 tenha sobre água que Oscar2 não tenha sobre “água”. Se você preferir, você pode mesmo supor que Oscar1 e Oscar2 sejam duplicatas exatas em aparência, sentimentos, pensamentos, identidade interior, etc.
Ainda mais, você pode supor que o significado de “água” fosse um tanto igual à H20 na Terra, tanto em 1750 quanto em 1950; e o significado do termo “água” fosse um tanto igual à XYZ na Terra Gêmea, tanto em 1750 quanto em 1950. Oscar1 e Oscar2 entendiam o termo “água” diferentemente em 1750, a despeito deles estarem no mesmo estado psicológico. Embora a Química em 1750, tanto na Terra quanto na Terra Gêmea, não soubesse a composição do termo “água”, os significados eram diferentes. Assim, o significado do termo “água” não é a mesma coisa que o estado psicológico do falante quando ele vê água a sua frente.
Porém, pode-se objetar: por que deveríamos aceitar que o termo “água” tem o mesmo significado em 1750 e em 1950 (na Terra e na Terra Gêmea)? Essa pergunta é complicada; usarei um exemplo para tentar respondê-la.
Suponha que eu aponte para uma garrafa de água e diga “este líquido é chamado de água”. Minha “definição ostensiva” de água tem a seguinte pressuposição empírica: uma certa massa de líquido, que eu estou apontando, sustenta uma certa relação de semelhança para a maior parte das coisas que eu e os outros falantes, na minha comunidade lingüística, temos chamado de “água” em diversas ocasiões. Mas essa pressuposição pode ser falsa porque, pode acontecer, d’eu estar apontando para uma garrafa de álcool e não para uma de água; nesse caso, eu não pretendo que a minha definição ostensiva seja aceita. Desse modo, a definição ostensiva carrega o que pode ser chamado de uma condição necessária e suficiente de “mesmidade” (nesse caso, aponto para um líquido que acredito ser o mesmo que água): a condição necessária e suficiente para ser água é sustentar a relação de “mesmidade” com relação à coisa na garrafa; mas essa é uma condição necessária e suficiente somente se a pressuposição empírica for satisfeita. Se ela não for satisfeita, deveremos, então, retroceder nossas análises fazendo uma revisão geral.
O ponto chave é que a relação de “mesmidade” é uma relação teórico-científica: se algo é ou não é o mesmo líquido como este, isso pode envolver uma quantidade indeterminada de investigação científica a definir. Além disso, mesmo se uma resposta definitiva tenha sido obtida ou por meio de investigação científica, ou por meio da aplicação de algum teste de senso comum, a resposta pode ser anulável: investigações futuras poderiam contrariar o exemplo mais confiável. Assim, o fato de que alguém em 1750 pudesse ter chamado XYZ de “água”, enquanto ele ou seus sucessores poderiam não ter chamado XYZ de água em 1800 ou em 1850, não significa que o significado de “água” mudou para o falante médio nesse intervalo de tempo. Em 1750, em 1850 ou em 1950 poder-se-ia ter apontado para, por exemplo, o líquido do Oceano Atlântico como um exemplo de “água”. O que mudou foi que, em 1750, nós poderíamos, erroneamente, ter pensado que XYZ sustentava as relações de “mesmidade” para com o líquido no Oceano Atlântico, enquanto em 1800, ou em 1850, nós poderíamos ter o conhecimento de que isso é falso.
Antes de terminar, permita-me introduzir um exemplo que não seja de ficção-científica. Suponha que você seja como eu e não consiga distinguir um coelho de uma lebre. Ainda assim, podemos afirmar que o que entendo por coelho no idioma português é o mesmo que se entende por “coelho” em qualquer outro idioma. No meu caso, o conjunto de todos os coelhos e de todas as lebres têm o mesmo significado. Mas sabemos que coelho e lebre são dois tipos de animais. Assim, faz sentido pensar que essa diferença aconteça somente porquê os conceitos são diferentes? Ou é o mundo que sustenta a diferença de conceitos?
Minha concepção – e muito provavelmente a do leitor deste artigo - de coelho é exatamente a mesma da de lebre (envergonho-me em confessar). Se alguém heroicamente tentar sustentar que a diferença entre coelho e lebre seja explicada por uma diferença no meu estado psicológico ou mental, então nós poderemos sempre refutá-lo construindo um exemplo de Terra Gêmea.
Mais ainda, posso supor que eu tenha um clone idêntico na Terra Gêmea que seja molécula à molécula “idêntico” a mim (no sentido em que duas gravatas podem ser idênticas). Ainda mais, podemos supor que o meu clone pense os mesmos pensamentos verbalizados que eu penso, tenha os mesmos dados dos sentidos, as mesmas disposições, etc. É absurdo pensar que o seu estado psicológico seja um pouco diferente do meu: contudo, ele pode querer dizer lebre quando ele diz coelho e eu posso querer dizer coelho quando eu digo coelho.
Podemos supor, depois disso tudo, que é difícil sustentar que os significados estejam exclusivamente na cabeça!

2 comentários:

  1. Para sustentar esse argumento de significado, foi entretanto, necessário a criação de outros significados para a explicação de tal. As suposições aqui colocadas necessitam de significados, logo para a língua (em comunicação)explicar a língua -metalinguística- é necessário que haja seus códigos previamente entendidos. Assim para que haja então comunicação tem que haver portanto um entendimento reciproco de significados comuns para ambos.
    Língua x Fala (Ferdinand de Suassure)

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  2. Na minha avaliação, esse texto é uma tentativa de mostrar que a estrutura do mundo afeta os significados.

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