Inicialmente, pode-se arriscar que as diferenças substantivas entre o
trabalho do historiador e do cientista social se encontram na origem, ou
seja, no aparecimento da história e das assim chamadas ciências sociais,
notadamente a Sociologia, a Antropologia, a Ciência Política e a Economia.
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Busto de Heródoto |
A História aparece na Grécia Antiga com Heródoto e Tucídides, no século
quinto antes da era cristã. Desse modo, a História aparece num mundo
pré-cristão, num mundo pré-capitalista, num mundo dominado pela cultura
helênica, num mundo em que o pensamento filosófico começava a dar os seus
primeiros passos. Ou seja, um mundo bem diferente do nosso mundo
contemporâneo, profundamente marcado pelo pensamento medieval cristão e
pelo cogito cartesiano na modernidade.
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Sir Isaac Newton Pintura de Lindsey Gray - acrílico sobre tela |
O sucesso da Física, tomada na modernidade como exemplo de
pensamento científico, ressaltou o interesse por parte dos primeiros
cientistas sociais com relação à ideia de universalidade e com relação ao
método dedutivo. Com relação à universalidade, não se quer afirmar que
não existisse essa preocupação no mundo grego antigo. Todavia, a ideia de
universalidade do mundo antigo era certamente menor do que a do mundo moderno,
pois, entre outros, o conhecimento do mundo era menor em vários sentidos.
Essa "menor universalidade" do mundo antigo pode ser percebida
no sentido geográfico, no sentido cosmológico, no sentido do que poderíamos
chamar de psicologia humana, entre outros.
Disso tudo,
podemos ensaiar conceitos, ainda que superficiais, do que é a História e do que
é a Sociologia; esses conceitos estão fincados no ambiente cultural em que
nasceram essas disciplinas. A Sociologia pode ser definida como o estudo
da sociedade humana, com ênfase em generalizações sobre sua estrutura e
desenvolvimento. A História é mais bem definida como o estudo de
sociedades humanas, ou culturas, no plural, destacando as diferenças entre elas
e as mudanças ocorridas em cada uma com o passar do tempo.
Pelas definições acima, não é forçoso inferir que a História possui um
caráter mais particularista do que a Sociologia. Todavia, esse profundo
particularismo histórico mostra que a História e a Sociologia são coisas
realmente diferentes, mas não necessariamente contraditórias. Assim,
talvez seja melhor tratar essas duas disciplinas como sendo complementares.
O particularismo histórico está relacionado com a super-especialização
do historiador em determinado lugar de determinada época. Essa super-especialização
pode levar o historiador a considerar o lugar pesquisado como sendo a sua
"paróquia", ou seja, um lugar completamente único, fechando os
olhos para a ideia de que esse mesmo lugar também é uma combinação única
de elementos que, individualmente, possui paralelos em outros lugares. Os
teóricos sociais - agora, não só falando da Sociologia - demonstram esse
espírito de paróquia em um sentido menos óbvio. O paroquialismo dos
cientistas sociais está mais relacionado com o tratamento que é dado ao tempo.
Os cientistas sociais possuem a mania de generalizar sobre a sociedade
com base apenas na experiência contemporânea, ou discutem a mudança social sem
levar em conta os processos históricos de longo prazo, os quais, muitas vezes,
estão carregados de sutilezas e de detalhes que não interessam aos cientistas
sociais.
Por conta desses "paroquialismos", os historiadores costumam
considerar, mais comumente nas fofocas de corredor, os cientistas sociais como
pessoas que não possuem nenhum sentido de lugar e de tempo, pessoas que reduzem
o indivíduo à categorias rígidas que desrespeitam as individualidades e, o pior
de tudo, os cientistas sociais consideram sua atividade como sendo científica.
Os cientistas sociais, por sua vez, costumam considerar os historiadores
como meros coletores de fatos, sem nenhuma capacidade de analisar as bases de
dados exaustivamente pesquisadas em prol de uma teoria mais ampla; ou
seja, para os sociólogos, os historiadores possuem realmente uma mentalidade
paroquial ou provinciana.
Além do "paroquialismo", o treinamento acadêmico também
fornece combustível para os conflitos entre historiadores e cientistas sociais.
Os historiadores são treinados em dar atenção a detalhes concretos em
detrimento de padrões gerais. Por outro lado, os cientistas sociais são
treinados para observar ou formular regras gerais e, muitas vezes, analisar
e rejeitar as exceções. Nesse sentido, os historiadores são muito mais
abertos a casos excêntricos e às exceções do que os cientistas sociais.
Na virada do século XIX para o século XX, a tensão entre historiadores e
cientistas sociais pôde ser nitidamente constatada. Nessa época, vários
historiadores se afastaram não só da teoria social, como também se afastaram da
História Social, considerando esses objetos de estudo pouco dignos.
Esse afastamento tem um nome: Leopold von Ranke. Importante afirmar
que Ranke não rejeitava completamente a história social; todavia, seu
trabalho como historiador se concentrava na figura do Estado, a qual só poderia
ser devidamente abordado pela História Política. Mas, por que a História
Política ganhou força no final do século XIX? A resposta para essa
pergunta possui, pelo menos, dois aspectos.
Primeiro aspecto. No século XIX, os governos europeus
começaram a considerar a história como um instrumento para a promoção da
unidade nacional, um instrumento para educar e formar cidadãos. O tipo de
história, suponha-se, que melhor se adequava para se fazer uma propaganda estatal é,
naturalmente, a História do Estado, inserida na História Política. Os
vínculos entre os historiadores e o governo estatal eram bastante fortes, por exemplo,
na Alemanha, onde Ranke nasceu.
Segundo aspecto. A evolução histórica associada a Ranke era
sobretudo uma revolução nas fontes e nos métodos, que deixavam de usar as
histórias mais antigas ou "crônicas", substituindo-as pelos registros
oficiais do governo. Os historiadores começaram a trabalhar regularmente
nos arquivos e elaboraram uma série de técnicas cada vez mais sofisticadas para
avaliar a confiabilidade dos documentos que encontravam nos registros do
governo. A produção de uma "História Oficial" criou a sensação
de que esse tipo de história é mais objetiva e científica do que a História
feita anteriormente, sem esse carimbo de "documento oficial". Essa sensação foi reforçada porque o aparecimento de
institutos de pesquisa, de revistas especializadas e mesmo a estruturação dos
departamentos de História nas universidades se deveu, em grande medida,
ao repasse de verbas governamentais que estimulavam o estudo da História
Política.
Nesse sentido, o
trabalho dos historiadores sociais parecia não ser tão sério ou profissional se
comparado com o trabalho dos historiadores da Escola Metódica Rankeana. Na
verdade, a História Social era considerada uma espécie de sobra da verdadeira
história: a História Política baseada no Estado. Assim, História Social e
História Política sofreram uma separação artificialmente radical.
Para
exemplificar tal cisão, podemos citar o caso do historiador J.R. Green que
publicou a obra "SHORT HISTORY OF THE ENGLISH PEOPLE" em 1874. Nessa obra, Green se concentrou na vida
cotidiana em detrimento de batalhas e tratados. Seu ex-professor, chamado E. A.
Freeman, comentou, segundo dizem, que se Green tivesse excluído toda a
"tralha social", o livro "Breve
história do povo inglês" poderia ter sido um bom livro de história da
Inglaterra. (Citado em Burke, 2012, p. 22).
Essa cisão
também atingiu os historiadores alemães e franceses. No ambiente alemão, a obra
de Jacob Burckhardt, "Cultura do
Renascimento na Itália" de 1860, hoje uma obra clássica, não obteve
sucesso na época da publicação; esse insucesso pode estar relacionado ao fato
de que Burkhardt utilizou mais fontes literárias do que registros oficiais. No
mesmo ano, o historiador francês Numa Denis Fustel de Coulanges escreveu a obra
"A cidade antiga".
Coulanges também nutria grande interesse pela História Social. Essa obra, hoje
também considerada um clássico, foi melhor recebida pelos seus pares franceses, se compararmos com a recepção da obra de Burckhardt pelos seus pares alemães.
Todavia, o espírito rankeano não permitiu enxergar devidamente o alcance e a
profundidade da obra de Coulanges.
Pode-se afirmar que a revolução histórica de Ranke aumentou o conflito
entre historiadores e cientistas sociais. A escola metódica colocou no centro
dos seus interesses a História Política tradicional, isso tornou o trabalho dos
historiadores, do final do século XIX e início do século XX, mais limitado e
até, em certo sentido, a escolha de temas se mostrou mais engessada.
Interessante notar que a justificativa de vários historiadores para a rejeição
da história social cambiava em dois pólos diversos: os rankeanos rejeitaram a
História Social porque ela não poderia ser estudada cientificamente;
paradoxalmente, outros historiadores repudiaram a Sociologia, por exemplo, pelo
motivo oposto, ou seja, a Sociologia era entendida como sendo científica
demais, no sentido de que era uma matéria abstrata e genérica, não respeitadora
das particularidades dos personagens e eventos históricos.
Diferentemente dos historiadores com relação aos estudos sociais, quatro
importantes teóricos sociais utilizaram fartamente a história em seus
trabalhos: Alex de Tocqueville, Karl Marx, Adam Smith e Gustav Schmoller.
A obra "O antigo regime e a evolução"
(1856) de Alex de Tocqueville foi um trabalho seminal de história com base em
documentos originais, assim como um marco em teoria social e política. "O
capital" de Marx e "A riqueza das nações" de Smith são obras que
representam uma contribuição pioneira para a história e a teoria econômica;
dentre os assuntos dessas duas obras estão a discussão da legislação
trabalhista, a mudança do artesanato para os produtos manufaturados, a
expropriação da classe camponesa, o aparecimento da burguesia, entre outros. Embora seja pouco conhecido no Brasil, Gustav Schmoller (1838 - 1917)
foi um dos pioneiros na tentativa de unir História com o pensamento econômico.
O autor alemão foi uma importante figura da assim chamada Escola Histórica de
Economia Política; ele é mais conhecido como historiador do que como
economista.
Esses quatro autores desenvolveram trabalhos relativamente raros em suas
épocas. Eles combinaram teoria social com o interesse pelos detalhes das
situações históricas concretas. Na segunda metade do século XIX, o mais comum
era a preocupação com as tendências duradouras ou com o que pode ser chamado de
"evolução social".
Para entender o que significa essa evolução social, é necessário
remontar esquematicamente o pensamento do francês Auguste Comte. Para
Comte, a verdadeira teoria social, ou Sociologia, não deveria se preocupar com
os nomes dos indivíduos e nem com os nomes dos povos. Claramente, essa
concepção está atrelada a uma Filosofia da História, no sentido em que o
passado poderia ser estudado na forma de estágios que obedeceriam a certas leis
da evolução histórica. No caso da Filosofia da História de Comte, essas leis
apontariam para três eras: a era da religião, a era da metafísica e,
finalmente, a era da ciência. O pensamento comteano influenciou o "método
comparativo" que era considerado histórico, no sentido de colocar todas as
sociedades em uma mesma escala evolucionária.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BURKE, Peter. História e teoria social. 3a ed. São Paulo: Editora Unesp, 2012.