I -
INTRODUÇÃO
O pensamento ocidental foi fortemente marcado
pela filosofia antiga, principalmente pelos escritos de Platão e Aristóteles.
As influências metafísicas, epistemológicas, éticas desses dois
pensadores são enormes para o nosso mundo. Qualquer discussão mais séria ou
mais aprofundada sobre ciência, religião, ética ou política passa quase que
necessariamente pelos problemas filosóficos levantados por esses dois
importantes filósofos da antiguidade. Obviamente, muitos outros nomes da
filosofia grega antiga ajudaram a moldar a concepção de mundo e de homem do
mundo ocidental. Todavia, Platão e Aristóteles exerceram uma espécie de
fascínio principalmente entre os pensadores do mundo medieval e os da modernidade.
Prova disso são as influências que Platão e Aristóteles exerceram nos
pensamentos de Santo Agostinho e de Santo Tomás de Aquino, respectivamente, e
mesmo as influências sofridas pela epistemologia moderna, nitidamente via
racionalismo e empirismo.
Reconhecido o tributo da Filosofia Antiga - focadas nas obras de Platão
e Aristóteles - para o mundo medieval e para o mundo moderno, é preciso dar o
segundo passo. Esse passo consiste em se tentar estabelecer quais obras
e, também, quais ideias influenciaram os pensadores medievais e modernos.
O terceiro passo, mais complicado, é tentar entender como essas ideias
foram entendidas e apropriadas.
II – TIMEU
Para começar, respeitando a cronologia, podemos tentar analisar o
pensamento platônico do qual saíram, pelo menos, três obras que influenciaram
fortemente a filosofia posterior. Essas obras são: o livro VII da
República (a alegoria da caverna), Timeu e Fédon. Importante ressaltar
que esses três diálogos fazem parte do conjunto do que poderíamos chamar de os
últimos diálogos platônicos, o que, em certa medida, pode representar o
pensamento maduro de Platão. [1]
Comumente, o diálogo Timeu é dividido em três partes ou três temas
principais que apareceram durante todo o texto. Os três temas são os
seguintes:
1)
a construção do mundo por uma
operação racional,
2)
àquilo que acontece por necessidade
bruta da matéria a qual é anterior à ação do Demiurgo e
3) a combinação humana de corpo e alma, além do aparecimento de
outros seres que povoam o mundo, como as árvores e os outros animais.
Importante notar que há também um quarto tema o qual, em grande
medida, estrutura a compreensão, digamos, física dos três temas acima citados.
Esse tema pode ser considerado o "atomismo platônico". Nesse
atomismo, os elementos que compõem o universo atuam não só mecanicamente, eles
possuem um telos ou uma finalidade. Esse tema é importante porque os
átomos platônicos estruturam os quatro elementos e também causam o movimento. Platão
escreveu o seguinte:
Agora, devemos conceder todos esses elementos como
de proporções tão reduzidas, que cada um deles, considerado isoladamente em
cada gênero, escapa à nossa vista, por causa de sua pequenez; só percebemos as
massas formadas por uma multidão deles. Ademais, com relação à proporção
numérica, movimentos e outras propriedades, devemos admitir que a divindade os
ajustou na medida certa, quando os organizou com perfeição até nas menores
particularidades, dentro dos limites permitidos pela necessidade condescendente
e acessível à persuasão. (56a - d)
Parece evidente que o atomismo platônico se fundamenta na figura
geométrica chamada triângulo, pois
[...] é claro para todo o mundo que o fogo a terra
a água e o ar são corpos (sic). Ora,
todos os corpos apresentam profundidades, sendo de necessidade forçosa que a
profundidade esteja encerrada na natureza da superfície e que toda superfície
retilínea seja composta de triângulos. (53c - d)
Aliás, Platão cita os quatro tipos de triângulo - escaleno, isósceles,
equilátero e retângulo - para explicar, por exemplo, a formação dos quatro
elementos - fogo, água, terra e ar - e também o movimento. Pela passagem
acima, pode-se inferir que o demiurgo "ajustou" e
"organizou" a matéria dentro de certos limites, pois o artesão
platônico não é capaz de interferir na necessidade bruta da matéria.
Também, é importante ressaltar que o demiurgo ajustou e organizou a
matéria de acordo com um modelo imutável e eterno. Assim, na cosmologia
platônica, tanto o modelo quanto a matéria existem anteriormente à ação demiúrgica.
na cosmologia platônica.
Em muitos aspectos, a cosmologia platônica segue a tradição dos três primeiros
filósofos oriundos da Jônia - Tales, Anaximandro e Anaxímenes -, segue também o
embate entre mobilistas e imobilistas iniciado, respectivamente, por Heráclito
e Parmênides, além dos pensamentos de Empédocles, Anaxágoras e Demócrito, só
para citar os mais famosos. Nesse
sentido, há também no Timeu a busca por um princípio (arché) que inicie todo um
processo; no caso desse diálogo, o princípio ordenador do mundo se refere a uma
espécie de artista, arquiteto ou artesão, o qual chamaremos de Demiurgo.
Ele ordenou a matéria tomando como base uma espécie de modelo pré-determinado.
Esse modelo é baseado numa realidade perfeita, imaterial, imutável e
eterna, também chamada de Mundo das Ideias.
O mundo habitado pelos humanos é imperfeito porque possui
substrato material, ou seja, a matéria traz elementos de desordem, de mudança, de
necessidade bruta. Desse modo, pode-se perceber duas concepções de
universo que irão causar certas tensões ao longo do diálogo platônico.
Uma concepção diz respeito ao universo divino, perfeito, apreendido pela
razão; a outra concepção diz respeito ao universo imperfeito, apreendido pela
sensação. A primeira concepção diz respeito ao que "sempre existiu e
nunca teve princípio", ou seja, é eterno. A segunda concepção diz
respeito àquilo que a "todo instante nasce e perece, sem nunca ser
verdadeiro".
A pesquisa platônica coloca assim o estudo desses dois
mundos:
Em que consiste o que sempre existiu e nunca teve
princípio? O primeiro é apreendido pelo entendimento com a ajuda da
razão, por ser sempre igual a si mesmo, enquanto o outro o é pela opinião,
secundada pela sensação carecente de razão, porque a todo instante nasce e
perece, sem nunca ser verdadeiramente. E agora: tudo o que nasce ou devém
procede necessariamente de uma causa, porque nada pode originar-se sem causa.
Quando o artista trabalha em sua obra, a vista dirigida para o que sempre
se conserva igual a si mesmo, e lhe transmite a forma e a virtude desse modelo,
é natural que seja belo tudo o que ele realiza. Porém se ele se fixa
no que devém e toma como modelo algo sujeito ao nascimento, nada belo poderá
criar. (27d – 28b)
Na passagem acima há claramente uma concepção estética do universo.
A beleza do modelo está associada às ideias de imutabilidade e de
eternidade. Assim, não é forçoso afirmar que o cosmo de Platão possui
fortes semelhanças com a feitura ou confecção de uma obra artística, orientada
pela concepção estético-racional do Demiurgo que, como visto, observa o modelo
perfeito - o Mundo das Ideias - para executar a sua obra.
Em outra
passagem, o personagem Timeu afirmou o seguinte:
Outro ponto que
precisamos deixar claro, é saber qual dos dois modelos tinha em vista o
arquiteto quando o construiu: o imutável e sempre igual a si mesmo ou o que
está sujeito ao nascimento? Ora, se este mundo é belo e for bom seu construtor,
sem dúvida nenhuma este fixara a vista no modelo eterno; e se for o que nem se
poderá mencionar, no modelo sujeito ao nascimento. Mas, para todos nós é mais
do que claro que ele tinha em mira o paradigma eterno; entre as coisas nascidas
não há o que seja mais belo do que o mundo, sendo seu autor a melhor das
causas. Logo, se foi produzido dessa maneira, terá de ser apreendido pela razão
e a inteligência e segundo o modelo sempre idêntico a si mesmo. Nessas
condições, necessariamente o mundo terá de ser a imagem de alguma coisa. (28c –
29b)
Disso tudo, podemos esboçar a metafísica platônica em termos das causas
que compõem o universo. No diálogo Timeu, pode-se identificar duas causas
que servem para a formação do Cosmo:
1)
Uma das causas está relacionada ao
que é o "divino", ou seja, àquilo que é sempre invariável. Essa
causa é apreendida pela razão ou pela inteligência.
2) A outra causa está relacionada ao acaso e à desordem, elementos
esses que causam o movimento no universo, ou o devir.
Assim, quem busca a verdadeira realidade "deve
necessariamente procurar primeiro as causas que pertencem à natureza
inteligente, e somente em segundo lugar as que pertencem às coisas movidas por
outras que, por sua vez, põem necessariamente outras mais em movimento"
(46d – e). Nessa passagem, pode-se inferir que o movimento não pertence à
natureza do Cosmo, pois, entre outros, o Cosmo é divino e, portanto,
invariável. Tanto Platão quanto Aristóteles parecem localizar esse Cosmo
divino para além da Lua. O mundo sublunar - o nosso mundo - teria fortes
elementos de acaso e de desordem, sendo, portanto, um desprezível objeto de
estudos. No Timeu, Platão faz uma crítica a quem tenta estudar o universo
ou a realidade se apoiando no mundo sublunar, em que há o movimento.
Tudo isso se inclui entre as causas secundárias de
que Deus se serve para realizar, tanto quanto possível, a ideia do melhor. Mas
a maioria dos homens não as considera secundárias, senão causas primárias de
tudo, por terem elas a propriedade de esfriar e aquecer, condensar e dilatar, e
demais efeitos do mesmo gênero. Mas tais causas são incapazes de atuar
com razão e inteligência. (46c – d)
No detalhe há as figuras
de Platão e Aristóteles. O primeiro apontando o dedo para o céu.
Como visto, a razão faz esse contato entre o humano e o universo divino.
Em uma passagem do Timeu, Platão deixa claro que a natureza da razão é
fundamentalmente Matemática. A passagem é a seguinte:
A meu parecer, a vista é para nós a causa do maior
benefício imaginável, porque nenhuma palavra da presente dissertação acerca do
universo jamais poderia ter sido enunciada, se nunca tivéssemos contemplado os
astros nem o sol nem o céu. Realmente, foi a vista do dia e da noite, dos
meses e das revoluções dos anos, dos equinócios e dos solstícios que nos levou
a descobrir o número, deu-nos a noção do tempo e os meios de estudar a natureza
do todo. Dela é que derivamos a filosofia, o mais precioso bem que o
gênero humano em algum tempo recebeu ou que venha a receber da munificência dos
deuses. (47a – b)
Pode-se
perceber que o conhecimento astronômico desempenha um papel central na
epistemologia platônica. Melhor, o estudo da astronomia é o tipo de estudo
adequado para se alcançar a verdadeira realidade do cosmo. Mas, como visto, o
estudo astronômico deveria se direcionar para os corpos para além da Lua, onde
vive o divino. Assim, é forçoso indagar: e o mundo que é de fato habitado pelas
criaturas humanas? Que tipo de mundo é esse? A resposta platônica é um tanto
complexa pois, entre outros, pressupõe uma separação radical entre o
conhecimento sensível e o inteligível de uma maneira nem sempre clara.
Resumidamente, o mundo sensível é como se fosse uma cópia imperfeita do mundo
inteligível, ou Mundo das Ideias. As cópias seriam forjadas numa espécie
de receptáculo, todavia a natureza desse receptáculo nunca muda pois ela
[...]recebe todos os corpos, (essa natureza) deve ser sempre designada como a mesma, pois jamais
se despoja de seu próprio caráter; recebe todas as coisas, sem nunca assumir,
de maneira alguma, o caráter do que entra nela. Por natureza, é matriz de todas
as coisas; movimenta-se e diversifica-se pelo que entra nela, razão de parecer
diferente, conforme as circunstâncias. Quanto às coisas que entram e saem,
devem ser consideradas cópias da substância eterna, cunhadas sobre esse modelo,
por maneira admirável e difícil de explicar. (50b – d)
Desse modo, nosso mundo foi cunhado ou produzido numa espécie de
receptáculo que possui todas as formas ou figuras que existem, pois se o
receptáculo
se parecesse com as coisas que entram nele, sempre
que chegassem coisas de natureza oposta ou totalmente diferente, ele as
representaria mal, porque seus próprios traços deformariam a imagem. Por isso
mesmo, o que tiver de receber todas as espécies, não deve possuir caráter
especial. (50e)
Resumidamente, pode-se afirmar que o nosso mundo é o produto de dois fatores:
o Demiurgo forjou-o num substrato material, ou receptáculo, com vistas para um
modelo que é o Mundo das Ideias.
A relação entre os sentidos e o Mundo das Ideias foi fonte de vários
problemas na filosofia platônica. No diálogo Timeu, o foco principal é sobre a
origem do mundo, do homem e das coisas que compõem, digamos, o habitat natural humano. Dessa maneira,
os problemas oriundos da teoria das ideias são pouco encaminhados; apesar
disso, Platão oferece interessantes e elucidativas explicações para a relação
entre o mundo sensível e o mundo inteligível. No diálogo Fédon - assim como o
Timeu, um diálogo de maturidade -, Platão parece rejeitar a ideia de que o
conhecimento é uma espécie de cooperação entre os sentidos e a razão. Segundo
Ross,[2] o diálogo Fédon marca a
existência separada do Mundo das Ideias. Então, como é possível o conhecimento
da verdadeira realidade e das regras que regem o universo?
A sugestão platônica passa pela concepção de que o mundo sensível não é
capaz de dar inteligibilidade às Idéias ou Formas porque
não é capaz de conhecê-las. Assim, na teoria platônica há uma espécie de
apriorismo, ou seja, um tipo de conhecimento que é anterior à experiência
sensível. Esse conhecimento é baseado numa espécie de reminiscência,
rememoração ou recordação, o qual atinge diretamente e, digamos, imediatamente,
o Mundo das Ideias. Importante ressaltar que essa anamnese é feita por
meio da alma que é a parte invisível e divina do ser humano. Assim, a
doutrina da anamnese parece claramente fazer uma separação radical entre o
Mundo das Ideias e o mundo sensível. Nesse contexto, o conhecimento só é
possível por verossemelhança, ou seja, tendo como modelo aquilo que
"é" e que não poderia ser de outra forma, como fez o Demiurgo para
montar o mundo.
Também no Fédon é possível identificar as características da alma
e do corpo. A alma teria as seguintes características: divinidade,
imortalidade, inteligibilidade, uniformidade, ela seria indissolúvel e sempre
igual a si mesma, ou seja, imutável; já o corpo teria as características
facilmente alcançáveis pela percepção humana: mortalidade, multiformidade, ininteligibilidade,
dissolutibilidade e perpétua mutabilidade. [3]
Uma das conclusões que se pode tirar da
cosmologia platônica é de que o universo é estruturado teleologicamente. O
caráter teleológico impõe certa maneira de se pesquisar o mundo. Assim, o
verdadeiro conhecimento do mundo não se fundamenta no modo como os eventos
naturais se apresentam aos nossos sentidos. O telos platônico impõe
tentar encontrar racionalmente o mundo ideal, levando-se em conta a
necessidade bruta da matéria e o devir.[4]
Esse tipo de pesquisa flerta fortemente com o pensamento apriorístico.
Prova disso é que as características da alma anteriormente elencadas -
divinidade, imortalidade, inteligibilidade etc. - só podem ser alcançadas pelo
raciocínio apriorístico, ou seja, a resposta para as características da
alma não encontram suporte na confirmação empírica. Obviamente, esse tipo
de pesquisa costuma gerar atritos entre aquilo que é observado e aquilo
que é alcançável somente com os olhos da razão. Comumente no Timeu, Platão
consegue explicar os fenômenos sensivelmente percebidos se utilizando da
explicação de tipo estético-divina ou de como o universo idealmente funciona; todavia,
noutras vezes, há uma espécie de "curto-circuito" entre os dados
empíricos e aquilo que foi aprioristicamente concebido como sendo o universo
ideal.
BIBLIOGRAFIA
PLATÃO. Timeu - Crítias - O Segundo
Alcebíades - Hípias Menor . Tradução:
Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2001.
ROSS, William David, Sir. Plato’s theory of ideas. Clarendon Press:
Oxford, 1951.
Zeyl,
Donald, "Plato's Timaeus", The Stanford Encyclopedia of Philosophy
(Spring 2014 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = .
[1] Ross fornece a ordem dos
diálogos platônicos na percepção de 5 autores, entre eles Ritter e Wilamowitz.
Ver ROSS (1951, p. 2).
[2] ROSS (1951, pp. 24-25). Em
grande medida, a tese da separação radical entre o mundo sensível e o mundo
inteligível também pode ser percebida na alegoria da caverna.
[3] Essas características são
apontadas por Ross. Ver ROSS (1951, p. 122)
[4] Zeyl nos fornece interessante
explicação sobre a relação entre teleologia e pesquisa cosmológica em Platão. Ver:
Zeyl, Donald, "Plato's Timaeus", The
Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2014 Edition), Edward N. Zalta
(ed.), URL =
.
Acessado em 26/08/2014.
Trabalho excelente, não sou estudante do curso de filosofia, um mero entusiasta do conhecimento, apenas vi uma referência sobre a cosmologia de Platão e quis buscar entender melhor do que se tratava, por sorte caí no seu excelente texto, um agradecimento!
ResponderExcluirBoa Tarde!
ResponderExcluirMuito obrigado pelas palavras gentis. Agradeço de coração.
Peço desculpas pelo grande atraso em responder.
Abandonei por um tempo o meu blog, mas agora estou fazendo umas reformulações e voltarei com toda energia a alimentar o meu blog.
Obrigado e desejo o melhor para você.