domingo, 28 de fevereiro de 2010

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA (C2): O QUE É FILOSOFAR

O QUE É FILOSOFAR: LINKS PARA VÍDEOS
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I
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Para THOMAS NAGEL, nascido na ex Iugoslávia em 1937, nossa capacidade para filosofar acontece muito cedo. Por volta dos 14 anos, muitas pessoas já possuem a capacidade para lidar razoavelmente bem com ideias abstratas e argumentos teóricos. Ou seja, pensar filosoficamente necessita somente de habilidades básicas humanas. Num certo sentido, todos nós filosofamos ao longo de nossas vidas. A atividade filosófica é mais comum do que parece prima facie. Assim, para filosofar não é necessário ser um gênio, ou ter uma erudição assombrosa; não é necessário conhecer profundamente todos os filósofos da história, ou conhecer alguma ciência profundamente. Todos esses elementos podem ajudar a filosofar, mas não são o mesmo que filosofar. O exercício fim da Filosofia é justamente pensar a realidade, por mais vago que isso possa parecer. Nesse sentido, todos nós filosofamos de uma maneira ou de outra, de uma forma mais cuidadosa ou menos cuidadosa.


Mas, por que então a Filosofia parece ser uma disciplina tão difícil?
Podemos ensaiar duas respostas para essa complicada pergunta:

1) Porque, de certa forma, pensar a realidade é algo complicado. Basta pensar que cada um de nós tem uma noção de realidade que, invariavelmente, é baseada em experiências muito pessoais. Obviamente, a noção de realidade para alguém que passou boa parte da vida encarcerado é bem diferente da noção de realidade de um surfista. Mesmo entre pessoas de uma mesma família ou comunidade, as noções de realidade podem diferir. Por causa disso, as pessoas seguem estilos de vida tão diferentes.

2) Porque na vida cotidiana, nem sempre há lugar para se trabalhar profundamente com ideias abstratas e argumentos teóricos. Ideias abstratas e argumentos teóricos, apesar de serem uma capacidade humana comum, muitas vezes exigem um conhecimento técnico e empírico que demandam muito estudo.


Desenvolvendo melhor o segundo ponto, entenda-se por ideias abstratas aquelas ideias que lidam quase que exclusivamente com noções. Pode-se afirmar que essas ideias pode prescindir da realidade.
Os argumentos teóricos são argumentos sistematizados que se estruturam por meio do raciocínio. Espera-se que esses argumentos sejam válidos e verdadeiros. Na filosofia, existe uma grande diferença entre validade e verdade. Essa diferença pode ser melhor percebida quando construimos silogismos do tipo:

  • SILOGISMO I



  1. Premissa 1 - Todo homem é mortal


  2. Premissa 2 - Sócrates é homem


  3. Conclusão - Logo, Sócrates é mortal


Podemos perceber que há uma relação necessária entre as premissas 1 e 2 e a conclusão 3. Quando isso ocorre, dizemos que o argumento é válido. Portanto o SILOGISMO I é válido. Todavia, nem todo argumento válido é verdadeiro. Vejamos o exemplo abaixo:

  • SILOGISMO II



  1. Premissa 1 - Todo quadrado tem somente 3 lados


  2. Premissa 2 - O triângulo tem 3 lados


  3. Conclusão - Logo, o triângulo é um quadrado

O SILOGISMO II pode ser considerado válido, porque a conclusão é uma consequência normal das premissas, porém o SILOGISMO II não é verdadeiro. Já o SILOGISMO I parece ser verdadeiro.

Desse modo, um argumento é considerado válido quando de fato existe uma relação que liga o ANTECEDENTE (premissas 1 e 2) com o CONSEQÜENTE (conclusão). Quando isso ocorre, temos uma inferência válida. Quando isso não ocorre, temos uma falácia como no SILOGISMO III abaixo:


  • SILOGISMO III



  1. Premissa 1 - Toda manga é uma fruta


  2. Premissa 2 - A minha camisa tem duas mangas


  3. Conclusão - Logo, a minha camisa tem duas frutas

Percebe-se no SILOGISMO III que aparentemente o argumento é válido, porém o termo "manga" na premissa 1 se refere a um tipo de objeto, enquanto "manga" na premissa 2 se refere a outro tipo de objeto. Não há, assim, uma relação que ligue a conclusão com as premissas.

O conceito de VERDADE é um conceito METAFÍSICO e foge das preocupações normais da lógica. Assim, foi afirmado que o SILOGISMO I é válido e verdadeiro. Sua verdade vem do fato de que todos os homens são mortais e de que, realmente, Sócrates pertence à humanidade. Já o SILOGISMO II é considerado falso porque é falsa a a afirmação de que "Todo quadrado tem somente 3 lados".

Desse modo, filosofar significa ter a capacidade de analisar discursos que são formados por argumentos silogísticos. Nesse nível, o filósofo está preocupado com duas coisas:

1) perceber se a inferência é válida e

2) perceber se as premissas de um discurso são verdadeiras.

Como afirmado, a busca pela verdade é um trabalho metafísico. Na METAFÍSICA, o filósofo busca saber o que realmente existe. Outro campo da prática filosófica é a EPISTEMOLOGIA. Nessa, a indagação central é se podemos chegar a conhecer ou saber algo. A ÉTICA, também, sempre esteve atrelada à pesquisa filosófica; uma das principais perguntas feitas pelos eticistas é se existe o certo e o errado.


Todas as três áreas citadas acima possuem problemas que aguçam a indagação filosófica. Por exemplo, tentar descobrir o que realmente existe exige um alto grau de esforço especulativo que vem sendo burilado há mais de 2500 anos. Talvez, não sejamos capazes de descobrir o que realmente existe...


Todavia, é importante ressaltar que a especulação filosófica, muitas vezes, necessita do apoio das ciências. Todavia, Filosofia não é uma ciência, no sentido de não lançar mão da metodologia científica e da experimentação. Também, não existe um caminho para o filosofar. Como afirmado, até uma criança pode filosofar, mesmo que nunca tenha ouvido falar de Platão, de Descartes ou de Kant.

O que caracteriza o filósofo é a sua capacidade de fazer bons questionamentos. O filósofo questiona desde o senso comum até complexas teorias científicas. O exercício do questionamento gera um espírito crítico que pode ser usado para esclarecer aquilo que parece confuso ou obscuro dentro de uma teoria. Ou seja, só se pode criticar algo quando se conhece bem esse algo. Nesse trajeto, podemos perceber que o filosofar tem algo de pedagógico, porque uma boa crítica pode instruir melhor no encaminhamento de certo problema que está encoberto por falácias e falsas verdades.

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II

Para BERTRAND RUSSELL (1872-1970), filósofo inglês, uma das principais perguntas filosóficas é a seguinte:

"Existe no mundo algum conhecimento tão certo que nenhum homem razoável possa dele duvidar?"

Obviamente, muitas pessoas responderiam apressadamente que sim. Mas basta um pouco de reflexão para percebermos que essa pergunta é mais complicada do que parece à primeira vista. Por exemplo, uma criança pode afirmar que as nuvens são feitas de algodão, ela responde isso baseada talvez nas suas percepções mais imediatas. Podemos chamar a esse tipo de resposta de uma resposta descuidada. As respostas descuidadas não são um privilégio do mundo infantil, muitos adultos percebem a realidade descuidadamente, ou por causa da ignorância ou por causa de dogmas.

Dogmas são respostas consideradas verdadeiras e que não podem ser criticadas. Ao longo da História vários povos deram respostas dogmáticas para algum aspecto da realidade. Como exemplo podemos citar a pretensa superioridade da raça ariana defendida no regime nazista. Para um nazista consistente, a superioridade da raça ariana é uma verdade absoluta, não sendo, assim, passível de ser criticada. Assim, se ele descobrisse ser ele próprio um judeu, ele mesmo se entregaria para ser morto em algum campo de concentração. Podemos perceber que a coerência da pessoa dogmática pode escorregar no fanatismo.

A resposta filosófica para a realidade evita cair nas armadilhas da resposta descuidada e da resposta dogmática. O filósofo faz isso armado do seu pensamento crítico que costuma duvidar das poderosas experiências pessoais e do saber dos especialistas. Quando alguém se apóia no conhecimento especializado, comete aquilo que Russell chama de conhecimento por descrição. Assim, o leigo acredita que houve a REVOLUÇÃO FRANCESA. Ele confia nas informações dos historiadores. Esse conhecimento é por descrição.

Importante ressaltar que certas evidências parecem comandar nossos conhecimentos. No caso das experiências pessoais, a evidência são as lições que a vida trouxe e traz. Por isso, os pais costumam aconselhar aos filhos de como eles devem levar a vida, pois os pais "já passaram por muitas experiências..."

A evidência, no caso do conhecimento por descrição, está, supõe-se, em elementos que provem algo. Por exemplo, a existência da Revolução Francesa é baseada em documentos históricos que sustentam esse fato. Todavia, é importante não confundir evidência com verdade. Muitas vezes somos compelidos a pular da evidência direto para a verdade, mas essa ansiedade pode gerar problemas. Como exemplo, podemos pegar o nosso desafortunado soldado nazista que se entregou porquê descobriu que era judeu. Aparentemente, ele parece um alemão típico, com todas as características físicas e espirituais do povo germânico. Porém, seu DNA, digamos assim, possui 0% da raça ariana.

Nesse sentido, nosso desafortunado soldado nazista foi enganado pelos sentidos. Não só ele, mas todos os seus companheiros de farda. Assim, as características superficiais desse soldado apontavam em uma direção; todavia, a direção estava errada. Desse modo, nossos sentidos parecem não ser bons instrumentos para se conhecer a realidade. O filósofo, dessa maneira, tenta separar aquilo que é aparência daquilo que é realidade. É uma tarefa inglória porque se negarmos por demais os nossos sentidos, parece que sobra muito pouco daquilo que chamamos de realidade. No caso do nosso infeliz soldado, seu DNA o acusou. Mas será que se tirarmos todas as características superficiais desse soldado, sobrará algo para ser mandado para o campo de concentração? No final, só parece sobrar o seu DNA...

Todavia, filósofos como RUSSELL não acreditam que todo conhecimento é de Primeira Pessoa ou pessoal. Esse tipo de conhecimento é chamado de subjetivo e o subjetivista, aparentemente, não desconfia dos 5 sentidos humanos (audição, paladar, olfato, tato, visão). Porém, para Russell, os nossos sentidos não são confiáveis. Basta pensar que as experiências pessoais, mesmo as mais poderosas, apontam para um ponto de vista que não necessariamente é verdadeiro ou real. Se assim fosse, o louco que diz ser Napoleão poderia com boas razões reclamar o seu cargo no governo da França dos dias atuais, o que parece ser um absurdo.

Outro problema com os nossos sentidos é que eles forçam a criação duma realidade idealizada, no sentido de ser uma realidade muito centrada nas capacidades humanas. Chama-se a isso de antropocentrismo. Assim, a água morna parece estar quente no clima frio, mas, ao mesmo tempo, parece estar fria no clima quente. Todavia, a quentura ou friúra d'água não é uma propriedade intrínseca d'água. Ou seja, a sensação do quente ou do frio é uma característica que nós, humanos, atribuímos aos objetos por meio do tato; não é uma característica dos objetos eles mesmos. Podemos usar esse mesmo argumento para coisas que ouvimos, provamos, cheiramos ou vemos. Enfim, as sensações que temos são diferentes da realidade.

Sendo assim, logo vem a pergunta: será que os nossos sentidos são tão inúteis para se chegar a realidade? Russell não é tão pessimista assim. Para ele, os sentidos, pelo menos, mostram que existe algo "lá fora". Desse modo, a sensação, que é uma conjunção de sentidos, cria a consciência de algo que "ativa" os dados dos sentidos (audição, olfato, paladar, tato e visão); esse algo é justamente a realidade que, para Russell, é a coleção de todos os objetos físicos. Essa coleção de todos os objetos físicos é chamada de MATÉRIA.

Como percebido, Russell não acredita que os nossos sentidos sejam capazes de alcançar perfeitamente a realidade. Ou seja, nossos sentidos alcançam algo que pode ser definido como sendo uma aparência do mundo físico ou da matéria. Todavia, Russell acredita que os nossos sentidos apontam para algo que independe de nossas sensações, de nossas mentes.

Por isso, o filósofo inglês rejeita o idealismo. Para um idealista convicto a matéria necessita da mente para existir. Ou seja, tudo o que há é mental. Existe nada fora da mente. Russell rejeita essa tese, mas concorda que o que existe não pode ser totalmente diferente do que sentimos. Poderíamos classificar a metafísica russelliana como sendo realista, ou seja, existe uma realidade que está para além dos nossos sentidos. Ao mesmo tempo, por paradoxal que pareça, poderíamos classificar a epistemologia russelliana como sendo empirista, ou seja, o conhecimento vem pela sensação.



quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA (C1): FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

Apesar de ainda faltar um olhar histórico, mesmo agora no século XXI, afirmaremos que a FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA começou no início do século XX. No transcorrer do século XX, a grande maioria dos filósofos fez carreira nas universidades. Por causa disso, atualmente as discussões filosóficas são orientadas pelos acadêmicos. Talvez, por causa disso, a Filosofia se tornou um tanto mais rigorosa; basta lembrar que a FILOSOFIA ANALÍTICA [1], desenvolvida ao longo do século XX, se apoiou fortemente na lógica e na análise da linguagem, dando origem à FILOSOFIA DA LINGUAGEM [2].
Para tanto, muitos filósofos contemporâneos criticaram alguns pressupostos da Filosofia Moderna, principalmente o subjetivismo advindo da modernidade.

I - O PROJETO DA MODERNIDADE

A Filosofia Moderna começa com o "cogito" cartesiano. Como visto [ver neste blog "INTRODUÇÃO À FILOSOFIA: FILOSOFIA MODERNA"] Descartes acreditou que o sujeito pensante pudesse ser uma fonte confiável de conhecimento. Ainda na modernidade, David Hume contestou veementemente essa certeza cartesiana, mas foram pensadores do século XIX que aprofundaram ainda mais às críticas ao projeto moderno.


 Georg W.F. Heger (1770-1831)



GEORG WILHELM FRIEDRICH HEGEL [3] mostra que as transformações históricas são importantes na formação da consciência. Melhor, as transformações históricas são capazes de moldar a nossa percepção do mundo.
Semelhantemente, para KARL MARX [4] a Filosofia Moderna estava contaminada pelo idealismo, ou seja, estava contaminada pela concepção de que existem ideias puras, tal como pensava Platão.
Karl Marx (1818-1883)

Já os filósofos do ROMANTISMO não aceitaram a centralidade da epistemologia e da razão na modernidade. Para filósofos como FRIEDRICH SCHELLING (1775-1854) e Nietzsche, os filósofos deveriam se desprender da razão e se aproximar mais da imaginação, da intuição e da arte.

Disso tudo, podemos concluir que muitos pensadores não acreditaram numa consciência individual pura, ou numa subjetividade que desse conta da complexidade do mundo. Não por acaso, já no final do século XIX, filósofos como Nietzsche desdenhavam da tentativa de alguns filósofos em sistematizar a filosofia, arrumando-a em um sistema totalmente coerente.
Essa desconfiança com relação ao sujeito, tido como ponto de apoio para o saber filosófico, pode ser constatada por meio de vários pensadores dos séculos XIX e XX. ERNST MACH (1838-1916), físico e filósofo da ciência, afirmou que "Não há salvação para o sujeito". Interessante notar que o pensamento de Mach influenciou fortemente SIGMUND FREUD  [5].  No século XX, JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980) [6], filósofo do existencialismo, afirmou que "O homem é uma paixão inútil".
Sigmund Freud (1856-1939)
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II - A VITÓRIA DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM
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Os ataques feitos contra o subjetivismo fizeram com que os filósofos contemporâneos procurassem um outro ponto de apoio para as discussões filosóficas. Obviamente, esse novo ponto de apoio não poderia sofrer das inconveniências que o subjetivismo trazia. A linguagem surge, então, como forte candidata. Mas por que a linguagem?
Primeiro. Parece claro que a linguagem dá o tom daquilo que podemos apreender do mundo. Podemos "esticar" a linguagem para, por exemplo, desenvolver uma nova teoria; mas não parece crível que possamos estruturar uma teoria fora da linguagem.
Segundo. Por causa desse primeiro ponto, muitos filósofos acreditaram que a dimensão semântica da linguagem, ou o significado, forneceria uma porta privilegiada para se alcançar o mundo.
Terceiro. A linguagem - no sentido das línguas naturais, como o português, o inglês, o espanhol etc. - possui uma estrutura formal, com regras e padrões identificáveis. Podemos chamar a isso da dimensão sintática da linguagem. A força da dimensão sintática está na sua semelhança com certas estruturas lógicas e por, supõe-se, independer do sujeito, não permitindo, assim, espaço para o subjetivismo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Para um entendimento inicial do que seja Filosofia Analítica, recomendo a obra abaixo: 

GLOCK, Hans-Johann. 
O que é Filosofia Analítica?
Tradução: 
Roberto Hofmeister Pich. Ed. Penso, 2011. 

[2] Para um entendimento inicial do que seja Filosofia da Linguagem, recomendo a obra abaixo: 

DA COSTA, Max W.A. 
Uma introdução à filosofia da linguagem
. Ed. Intersaberes, 2015.

[3] HEGEL, Georg W.F. Introdução à História da Filosofia. Tradução: Artur Morão. Ed.70 (Textos Filosóficos), 2006. 

[4] MARX, Karl & ENGELS, F.
A Ideologia Alemã
.
Tradução: Rubens Enderle. Ed. Boitempo, 2007. 

[5] Indico abaixo uma interessante obra que mostra as influências que o pensamento de Mach exerceu nas teoria de Freud. 

FULGENCIO, Leopoldo.
Mach e Freud: Influências e Paráfrases
. Ed. ATTAR (FAPESP: ediçõesConcern), 2016. 



RECOMENDAÇÕES DE LIVROS