quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A PRIMEIRA LÍNGUA E A PRIMEIRA RELIGIÃO



A PRIMEIRA LÍNGUA E A PRIMEIRA RELIGIÃO



Roque de Barros Laraia[1] nos informa que o antropólogo ALFRED KROEBER (1876 – 1960), em um artigo intitulado "O superorgânico",[2] refere-se a dois experimentos que supostamente foram feitos no passado. Qualquer um pode duvidar da veracidade desses acontecimentos; até mesmo Kroeber parecia cético com relação à autenticidade desses. Mas o mais relevante é perceber que esses experimentos servem para mostrar algo da busca humana pela origem das coisas, mesmo que essa busca pareça absurda ou mesmo cruel.



Kroeber



Importante salientar que esses dois experimentos estão separados por cerca de 20 séculos, ou seja, por um longuíssimo período de tempo. O primeiro experimento foi relatado, segundo Kroeber, por Heródoto (484 a.C. - 425 a.C.)[3] há cerca de 500 anos antes da era cristã. A segunda experiência está relacionada ao imperador mongol conhecido como Akbar, o Grande (1542 - 1605).



Heródoto

Kroeber narrou assim esses experimentos: [4]


Heródoto conta-nos que um rei egípcio, desejando verificar qual a língua-mater da humanidade, ordenou que algumas crianças fossem isoladas da sua espécie, tendo somente cabras como companheiros e para o seu sustento. Quando as crianças já crescidas foram de novo visitadas, gritaram a palavra bekos, ou, mais provavelmente bek, suprimindo o final, que o grego padronizador e sensível não podia tolerar que se omitisse. O rei mandou então emissários a todos os países afim de saber em que terra tinha esse vocábulo alguma significação. Ele verificou que no idioma frígio isso significava pão, e, supondo que as crianças estivessem reclamando alimentos, concluiu que usavam o frígio para falar a sua linguagem humana "natural", e que essa língua devia ser, portanto, a língua original da humanidade. A crença do rei numa língua humana inerente e congênita, que só os cegos acidentes temporais tinham decomposto numa multidão de idiomas, pode parecer simples; mas, ingênua como é, a inquirição revelaria que multidões de gente civilizada ainda a ela aderem.
Contudo, não é essa a nossa moral da história. Ela está no fato de que a única palavra, bek, atribuída às crianças, constituía apenas, se a história tem qualquer autenticidade, um reflexo ou imitação — como conjeturam há muito os comentadores de Heródoto — do grito das cabras, que foram as únicas companheiras e instrutoras das crianças. Em suma, se for permitido deduzir qualquer inferência de tão apócrifa anedota, o que ela prova é que não há nenhuma língua humana natural e, portanto, nenhuma língua humana orgânica.
Milhares de anos depois, outro soberano, o imperador mongol Akbar, repetiu a experiência com o propósito de averiguar qual a religião natural da humanidade. O seu bando de crianças foi encerrado numa casa. Quando decorrido o tempo necessário, ao se abrirem as portas na presença do imperador expectante e esclarecido, foi grande o seu desapontamento: as crianças saíram tão silenciosas como se fossem surdas-mudas. Contudo, a fé custa a morrer; e podemos suspeitar que será preciso uma terceira experiência, em condições modernas escolhidas e controladas, para satisfazer alguns cientistas naturais e convencê-los de que a linguagem, para o indivíduo humano como para a raça humana, é uma coisa inteiramente adquirida e não hereditária, completamente externa e não interna — um produto social e não um crescimento orgânico.  


Embora esses experimentos tenham como objetos a linguagem e a religião, podemos estender a busca para a cultura original da humanidade; ou melhor, podemos fazer a seguinte pergunta:
Qual cultura corresponde à verdadeira natureza primordial humana?
Essa pergunta pode parecer tola, sem sentido e até mesmo bizarra. Todavia, atualmente muitas pessoas, agrupamentos sociais e grupos políticos reivindicam, sem muito pudor, determinados modos de vida como sendo os mais verdadeiros, pois supostamente pertenceriam à verdadeira natureza humana. Frequentemente, muitos grupos religiosos cometem e cometeram desumanidades com relação a outros grupos com a justificativa de que o outro grupo não segue a “verdadeira” religião. Atualmente, isso acontece com bastante frequência no Oriente Médio e mesmo no Brasil, considerado um país tolerante com relação às crenças religiosas. O exemplo mais dramático de perseguição cultural no século XX foi o que aconteceu na Alemanha nazista. Durante a Segunda Grande Guerra Mundial, milhares de judeus foram perseguidos e mortos por não seguirem o conjunto de crenças culturais impostas pelos líderes do nazismo.
Desse modo, Kroeber e outros estudiosos da cultura não acreditam ser possível encontrar a natureza humana primordial; por implicação, não é possível encontrar nem a linguagem original, nem a religião original e nem mesmo a cultura original.  

[...] isso sugere não existir o que chamamos de natureza humana independente da cultura. Os homens sem cultura não seriam os selvagens inteligentes de Lord of the Flies,[5] de Golding, atirados à sabedoria cruel dos seus instintos animais; nem seriam eles os bons selvagens do primitivismo iluminista, ou até mesmo, como a antropologia insinua, os macacos intrinsecamente talentosos que, por algum motivo, deixaram de se encontrar. Eles seriam monstruosidades incontroláveis, com muito poucos instintos úteis, menos sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto: verdadeiros casos psiquiátricos. Como nosso sistema nervoso central — e principalmente a maldição e glória que o coroam, o neocórtex — cresceu, em sua maior parte, em interação com a cultura, ele é incapaz de dirigir nosso comportamento ou organizar nossa experiência sem a orientação fornecida por sistemas de símbolos significantes.[6]



Isso não quer dizer que a cultura deva ser desconsiderada. A força dos traços culturais se mostra principalmente em situações de convívio social. Pode-se afirmar que a cultura estrutura a sociedade e fornece elementos para a política os quais orientarão formalmente toda uma nação ou povo.
O turista percebe bem a força da cultura; ele sabe que certos costumes praticados no Brasil não seriam bem recebidos numa cultura islâmica ou no Japão, por exemplo. Conhecer a cultura local pode ser inclusive uma questão de vida ou morte. Também, costuma-se dizer que cada empresa ou corporação possui uma cultura própria. É praticamente um dever do empregado conhecer a cultura empresarial da onde trabalha, pois esse conhecimento é uma espécie de “regras da casa” a serem seguidas caso se deseje obter sucesso no mundo corporativo.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
KROEBER, Alfred. The superorganic. American Anthropologist, v. 19, nº 2, 1917.




[1] Para a feitura deste texto, segui basicamente a obra de Roque de Barros Laraia intitulada “Cultura: um conceito antropológico” de 2005. O título do texto é “Uma experiência absurda”.
[2] KROEBER (1949).
[3] Heródoto nasceu na Grécia e é considerado o pai da História.
[4] Sigo inteiramente a tradução de Roque Laraia (2005, pp. 102 - 104).
[5] Essa obra foi traduzida para a nossa língua como “O senhor das moscas”. Há algumas versões cinematográficas dessa obra facilmente disponíveis. Essa nota é minha!
[6] LARAIA (2005, pp. 102 – 104).