quinta-feira, 12 de setembro de 2013

OS PRIMEIROS FILÓSOFOS

OS PRIMEIROS FILÓSOFOS
TALES, ANAXIMANDRO E ANAXÍMENES

TALES DE MILETO (c.624 – c.546 a.C.)[1]
Tales de Mileto é considerado, pela grande maioria dos estudiosos, o primeiro filósofo da história.  Como comumente acontece com os pré-socráticos, não se sabe com exatidão as datas de nascimento e de morte de Tales.   Ao que parece, Tales previu um eclipse solar.  Essa previsão permitiu fixar aproximadamente o seu nascimento em  torno de 624 a.C.  Sendo assim, podemos supor o nascimento do primeiro filósofo no final do século VII antes de Cristo e sua morte no século VI antes de Cristo (circa 546 a.C.). 
                                     
                                                                                        Tales de Mileto

 Atualmente, temos acesso a nenhum escrito de Tales, ou seja, nos chegou nenhum fragmento desse milesiano. Obviamente, isso dificulta enormemente o trabalho de análise do seu pensamento.  O que sabemos acerca de Tales de Mileto, sabemos por meio de escritos de terceiros, geralmente pensadores que tentaram de algum modo sistematizar as mais diversas teorias filosóficas,  muitas vezes comentando-as.   Esse processo é conhecido como doxografia.  As doxografias contribuíram tanto para se tentar apreender as teorias dos primeiros filósofos quanto, também, para a história da filosofia.  
 O trabalho dos doxógrafos forneceu indícios de que Tales se destacou em várias áreas do conhecimento humano,  entre elas a  astronomia, a matemática, a engenharia, a política.   Não por acaso, Tales de Mileto é considerado um dos sete sábios do mundo grego. Também, Tales serviu de inspiração para a primeira piada da história acerca da atividade filosófica.  A anedota é encontrada em Platão, no diálogo Teeteto, contada pela boca do personagem Sócrates:

Foi o caso de Tales, Teodoro, quando observava os astros; porque olhava para o céu, caiu num poço. Contam que uma decidida e espirituosa rapariga da Trácia zombou dele, com dizer-lhe que ele procurava conhecer o que se passava no céu mas não via o que estava junto dos próprios pés. Essa pilhéria se aplica a todos os que vivem para a filosofia. ( Platão, Teeteto, 174 a)[2]

Aristóteles, outro importante doxógrafo, fixou o pensador milesiano como sendo o primeiro filósofo.  Também, Aristóteles forneceu importante material para se tentar entender o pensamento de Tales.   A interpretação aristotélica forneceu interessante material de trabalho com relação à cosmologia milesiana.  Por conta disso, é interessante citar um trecho da Metafísica em que Aristóteles se refere aos primeiros filósofos e especificamente à Tales de Mileto. 

Dos primeiros filósofos, a maioria considerou os princípios de natureza material como sendo os únicos princípios de tudo que existe. Aquilo de que são constituídas todas as coisas, o primeiro elemento de que nascem e o último em que se resolvem (persistindo a substância, mas mudando em suas determinações acidentais),  a isso chamam eles o elemento e o princípio das coisas, julgando, por conseguinte, que nada é gerado ou destruído, já que essa espécie de entidade se conserva sempre, assim como não dizemos que Sócrates nasce quando se torna belo ou músico, ou que deixa de existir quando perde essas características, porque persiste o substrato em si, que é Sócrates. Da mesma forma, dizem eles que nenhuma outra coisa nasce ou deixa de existir, pois deve existir alguma entidade - uma ou mais de uma - das quais se originam todas as coisas, enquanto ela própria se conserva.
Nem todos eles concordam, porém, quanto ao número e à natureza desses princípios. Tales, o fundador deste tipo de filosofia, diz que o princípio é a água (por este motivo afirmou que a Terra repousa sobre a água), sendo talvez levado a formar essa opinião por ter observado que o alimento de todas as coisas é úmido e que o próprio calor é gerado e alimentado pela umidade: ora, aquilo de que se originam todas as coisas é o princípio delas. Daí lhe veio esta opinião, e também de que as sementes de todas as coisas são naturalmente úmidas e de ter origem na água a natureza das coisas úmidas. (Aristóteles, Metafísica, A3 983 b 6). [3]

Pelo extrato acima, podemos concluir que, para Tales, o princípio de todas as coisas era a água.  Como podemos entender a pesquisa desse princípio?
 Uma maneira interessante de encaminhar essa questão é perceber que esse princípio possui relação com duas outras ideias da cosmologia milesiana.  
A primeira está relacionada com o termo "arqué".  Esse termo significa, justamente, princípio.  Esse princípio seria algo primordial, o qual daria origem a todo um processo de formação da realidade.  Desse modo, Tales inovou em dois sentidos: na pesquisa da arqué e na fixação desse princípio como sendo algo natural. A segunda está relacionada com a ideia de que esse princípio explica a "physis"; physis em grego antigo pode significar realidade primeira, originária e fundamental.  Desse modo, podemos entender que, para Tales, o que estrutura a realidade é a água. 
Utilizando novamente a citação aristotélica, podemos entender que Tales tentou ser acomodar ao discurso do "logos", ou seja, buscou oferecer uma explicação racional para o princípio de todas as coisas.  Assim, Tales é considerado o primeiro filósofo por se afastar das explicações míticas.  Todas as explicações fantásticas, imaginárias, mágicas e mesmo intencionalmente obscuras são substituídas por um único princípio da natureza, facilmente e racionalmente apreensível - a água.

ANAXIMANDRO (c.610 – c.547 a.C.)

Podemos afirmar que os primeiros filósofos estavam interessados em descobrir o princípio de todas as coisas.  Para Tales, por exemplo, esse princípio era a água.  Contrariamente à Tales, Anaximandro achou que o princípio fosse o apeíron (apeiron).  
Num primeiro momento, esse princípio pode ser entendido como o indefinido, o ilimitado ou o indeterminado.  No grego antigo, a particula "a (a)" é uma partícula de negação; já o termo "peiron (peiron)" remete à ideia de limites ou de algo que é de alguma maneira determinado.  Aprofundando a análise, o apeiron traz consigo duas noções importantes para se entender o seu significado.  Numa delas, esse princípio se aproxima daquilo que é ilimitado espacialmente, se aproximando da ideia de infinito espacial.  Na outra, um tanto mais difícil de compreender, esse princípio pode ser entendido como sendo de indefinição qualitativa;  nesse último, podemos supor que o apeiron é formado de uma matéria diferente de todas as outras que compõem o mundo. Sendo assim, o princípio de tudo não pode ser formado, segundo a visão de Anaximandro, por algum elemento objetivamente e materialmente identificável como, por exemplo, o fogo, o ar ou a água. 
                                               
                                                                       
                                                                                       Anaximandro

 Anaximandro, que foi provavelmente discípulo de Tales, nos deixou um pequeno fragmento.  A partir, entre outros, desse fragmento, Simplício fez o seguinte comentário: 
Entre os que admitem um só princípio móvel e infinito, Anaximandro de Mileto [...] disse que o princípio e elemento das coisas que existem era o apeiron, tendo sido ele o primeiro a introduzir este nome do princípio material.  Diz ele que tal princípio não é nem água nem qualquer outro dos chamados elementos, mas uma outra natureza apeiron, de que provêm todos os céus e os mundos neles contidos. 

 Mais adiante, Simplício cita o trecho do fragmento de Anaximandro que chegou até nós:
E a fonte da geração das coisas que existem é aquela em que se verifica também a destruição "segundo a necessidade; pois pagam castigo e retribuição umas às outras, pela sua injustiça, de acordo com o decreto do tempo (...)" [4]






A partir dos trechos acima, podemos concluir que apesar de Anaximandro se preocupar com o princípio de todas as coisas, ele se afastou da explicação do tipo naturalista iniciada por Tales de Mileto.  Mas, por que Anaximandro não adotou algum elemento natural como princípio?  Só podemos fazer conjecturas para responder a essa difícil questão.  
Podemos pensar que a ideia do apeiron possuía fortes elementos da concepção teológica de Anaximandro.  Essa hipótese não é implausível, pois os pré-socráticos de modo geral foram influenciados pelos atributos divinos, encontrados principalmente nos contos homéricos.  Entre esses, encontramos a imortalidade, entendida como a vida sem limites, e o poder ilimitado. 
 Uma outra explicação, essa de orientação aristotélica,  acomoda a ideia de que Anaximandro imaginava um equilíbrio de contrários.  Nesse sentido, a água não poderia ser o princípio de tudo, pois o fogo, que é o seu elemento contrário, sofreria uma espécie de injustiça, contrariando o fragmento acima do segundo filósofo. 
Também, se a água fosse o princípio de tudo, forçosamente teríamos que dar lugar de destaque ao seu contrário - o fogo. Obviamente, a introdução de um segundo elemento como arqué contraria o espírito monista presente nos primeiros filósofos.

ANAXÍMENES (c.588 – c.524 a.C)

A filosofia de Anaxímenes encerra um ciclo da escola milesiana.  Anaxímenes foi discípulo de Anaximandro e provavelmente nasceu em Mileto.  Ele escreveu uma obra chamada “Sobre a natureza” da qual temos três fragmentos.  Para Anaxímenes, o princípio de todas as coisas era o ar.  Nesse sentido, ele se afasta do pensamento do seu mestre e se aproxima do naturalismo de Tales de Mileto.  Consultando a doxografia, lemos o seguinte trecho em Aristóteles: 

Anaxímenes e Diógenes fazem do ar, e não da água, o princípio material entre os demais corpos simples. [5]

                                                                          
                                                                                                      Anaxímenes

Mas por que Anaxímenes escolheu o ar como princípio estruturador de tudo?
A pesquisa doxográfica aponta para a ideia de que, na visão de Anaxímenes, o ar se presta a diversas variações; ou seja, "tudo é ar".  Apesar de se prestar a variações, o ar não perde a sua natureza para compor as coisas do mundo.  O ar constitui os outros elementos naturais por meio dos processos de condensação e de rarefação.  O processo de condensação do ar origina a água e também a terra, enquanto o processo de rarefação origina o fogo.  Teofrasto nos fornece uma análise mais pormenorizada dos processos do ar: 
[...] [Para Anaxímenes], a natureza subjacente é una e infinita, mas não indefinida, como afirmou Anaximandro, mas definida, porquanto a identifica com o ar; e que ela difere na sua natureza substancial pelo grau de rarefação e de densidade.  Ao tornar-se mais sutil transforma-se em fogo, ao tornar-se mais densa transforma-se em vento, depois em nuvem, depois (quando ainda mais densa) em água, depois em terra, depois em pedras; e tudo o mais provém destas substâncias. [...] [6]

 Apesar de Anaxímenes se afastar de Anaximandro com relação ao princípio material, ele parece se aproximar do mestre com relação à ideia de indeterminação espacial contida no apeiron.  Assim, além de permear mundo, o ar também é indefinidamente vasto, o que remete à ideia de ilimitação, ideia essa central para compor o apeiron de Anaximandro. Se assim é, podemos supor que a invisibilidade do ar conforma a ideia de algo sem limites, o que se aproximaria, como visto, das características divinas.
Também, podemos inferir certa explicação vitalista na escolha do ar como arqué.  Parece óbvio que todo ser vivo precisa de ar para viver; aliás, quando alguém morre se costuma dizer: ele deu o seu último sopro de ar.  Essa explicação também se aproxima do legado de Tales, pois, ao que parece, ele também procurou um elemento que sustentasse a vida e os processos vitais, no caso a água. 
 A onipresença e o vitalismo atribuídos ao ar contribuíram para que Anaxímenes escolhesse esse elemento como o estruturador do cosmos.  Essa intuição se baseia na ideia de que o céu tal como o percebemos é feito de ar.  Recorrendo ainda às nossas percepções comuns, do céu cai chuva (água) e de lá saem raios (fogo), elementos contrários que nascem de um elemento comum - o ar. 

CONCLUSÃO

 Podemos perceber que Anaxímenes trouxe para o seu pensamento elementos do seu mestre mais imediato, Anaximandro, mas também de Tales, iniciador do pensamento filosófico.  Esse tipo de atitude demonstra uma certa liberdade de pensamento, o que é característico do fazer filosófico.  Também, é interessante notar que a filosofia de Anaxímenes fez uma espécie de síntese entre as filosofias de Tales e de Anaximandro.  A contraposição de pensamentos e a busca por uma síntese entre teorias à disposição influenciarão e caracterizarão fortemente a filosofia ocidental. Desse modo, podemos concluir que os milesianos procuraram se aproximar da verdade sem recorrer ao mito; ou seja,  por meio da argumentação, do espírito anti-dogmático, do criticismo e do debate de ideias eles tentaram  responder do que é feita a nossa complexa realidade. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Metafísica. Editora Globo: biblioteca dos séculos.

KIRK, G.S., RAVEN, J.E. & SCHOFIELD, M. Os filósofos pré-socráticos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983 (4ª Ed.).

PLATÃO. Coleção: diálogos. Trad. Carlos Alberto Nunes. Ed. UFPA, 1973.

REALE, G. História da Filosofia Antiga (v.1). São Paulo: Loyola, 1993








[1] Para a fixação das datas, tentei seguir ao máximo as recomendações de REALE (1993) e de KIRK, RAVEN & SCHOFIELD (1983).
[2] Utilizo a tradução de NUNES (1973).
[3] Utilizo a tradução da Editora Globo, p. 42. Não sei o ano e nem quem fez o trabalho de tradução. 
[4] Esse trecho de Simplício se encontra citado em KIRK, RAVEN & SCHOFIELD (1983, pp. 106 - 107).
[5] Esse trecho de Aristóteles se encontra citado em KIRK, RAVEN & SCHOFIELD (1983, p. 147).

[6] Esse trecho de Teofrasto se encontra citado em KIRK, RAVEN & SCHOFIELD (1983, p. 147).