OS
PRIMEIROS FILÓSOFOS
TALES,
ANAXIMANDRO E ANAXÍMENES
TALES DE
MILETO (c.624 – c.546 a.C.)[1]
Tales de
Mileto é considerado, pela grande maioria dos estudiosos, o primeiro filósofo
da história. Como comumente acontece com os pré-socráticos, não se sabe
com exatidão as datas de nascimento e de morte de Tales. Ao que parece,
Tales previu um eclipse solar. Essa previsão permitiu fixar
aproximadamente o seu nascimento em torno de 624 a.C. Sendo assim, podemos
supor o nascimento do primeiro filósofo no final do século VII antes de Cristo
e sua morte no século VI antes de Cristo (circa
546 a.C.).
Tales de Mileto
Atualmente,
temos acesso a nenhum escrito de Tales, ou seja, nos chegou nenhum fragmento
desse milesiano. Obviamente, isso dificulta enormemente o trabalho de análise
do seu pensamento. O que sabemos acerca de Tales de Mileto, sabemos por
meio de escritos de terceiros, geralmente pensadores que tentaram de algum modo
sistematizar as mais diversas teorias filosóficas, muitas vezes
comentando-as. Esse processo é conhecido como doxografia. As
doxografias contribuíram tanto para se tentar apreender as teorias dos
primeiros filósofos quanto, também, para a história da filosofia.
O
trabalho dos doxógrafos forneceu indícios de que Tales se destacou em
várias áreas do conhecimento humano, entre elas a astronomia, a
matemática, a engenharia, a política. Não por acaso, Tales de Mileto é
considerado um dos sete sábios do mundo grego. Também, Tales serviu de inspiração
para a primeira piada da história acerca da atividade filosófica. A
anedota é encontrada em Platão, no diálogo Teeteto, contada pela boca do
personagem Sócrates:
Foi o
caso de Tales, Teodoro, quando observava os astros; porque olhava para o céu,
caiu num poço. Contam que uma decidida e espirituosa rapariga da Trácia zombou
dele, com dizer-lhe que ele procurava conhecer o que se passava no céu mas não
via o que estava junto dos próprios pés. Essa pilhéria se aplica a todos
os que vivem para a filosofia. ( Platão, Teeteto, 174 a)[2]
Aristóteles,
outro importante doxógrafo, fixou o pensador milesiano como sendo o primeiro
filósofo. Também, Aristóteles forneceu importante material para se tentar
entender o pensamento de Tales. A interpretação aristotélica forneceu
interessante material de trabalho com relação à cosmologia milesiana. Por
conta disso, é interessante citar um trecho da Metafísica em que Aristóteles se
refere aos primeiros filósofos e especificamente à Tales de Mileto.
Dos
primeiros filósofos, a maioria considerou os princípios de natureza material
como sendo os únicos princípios de tudo que existe. Aquilo de que são
constituídas todas as coisas, o primeiro elemento de que nascem e o último em
que se resolvem (persistindo a substância, mas mudando em suas determinações
acidentais), a isso chamam eles o elemento e o princípio das coisas, julgando,
por conseguinte, que nada é gerado ou destruído, já que essa espécie de
entidade se conserva sempre, assim como não dizemos que Sócrates nasce quando
se torna belo ou músico, ou que deixa de existir quando perde essas
características, porque persiste o substrato em si, que é Sócrates. Da mesma
forma, dizem eles que nenhuma outra coisa nasce ou deixa de existir, pois deve
existir alguma entidade - uma ou mais de uma - das quais se originam todas as
coisas, enquanto ela própria se conserva.
Nem todos
eles concordam, porém, quanto ao número e à natureza desses princípios. Tales,
o fundador deste tipo de filosofia, diz que o princípio é a água (por este motivo
afirmou que a Terra repousa sobre a água), sendo talvez levado a formar essa
opinião por ter observado que o alimento de todas as coisas é úmido e que o
próprio calor é gerado e alimentado pela umidade: ora, aquilo de que se
originam todas as coisas é o princípio delas. Daí lhe veio esta opinião, e
também de que as sementes de todas as coisas são naturalmente úmidas e de ter
origem na água a natureza das coisas úmidas. (Aristóteles, Metafísica, A3
983 b 6). [3]
Pelo
extrato acima, podemos concluir que, para Tales, o princípio de todas as coisas
era a água. Como podemos entender a pesquisa desse princípio?
Uma
maneira interessante de encaminhar essa questão é perceber que esse princípio possui
relação com duas outras ideias da cosmologia milesiana.
A
primeira está relacionada com o termo "arqué".
Esse termo significa, justamente, princípio. Esse princípio seria
algo primordial, o qual daria origem a todo um processo de formação da
realidade. Desse modo, Tales inovou em dois sentidos: na pesquisa da
arqué e na fixação desse princípio
como sendo algo natural. A segunda está relacionada com a ideia de que
esse princípio explica a "physis"; physis em grego antigo pode significar
realidade primeira, originária e fundamental. Desse modo, podemos
entender que, para Tales, o que estrutura a realidade é a água.
Utilizando
novamente a citação aristotélica, podemos entender que Tales tentou ser
acomodar ao discurso do "logos",
ou seja, buscou oferecer uma explicação racional para o princípio de todas
as coisas. Assim, Tales é considerado o primeiro filósofo por se afastar
das explicações míticas. Todas as explicações fantásticas, imaginárias,
mágicas e mesmo intencionalmente obscuras são substituídas por um único princípio
da natureza, facilmente e racionalmente apreensível - a água.
ANAXIMANDRO
(c.610 – c.547 a.C.)
Podemos afirmar que os primeiros filósofos estavam interessados em descobrir o princípio de todas as coisas. Para Tales, por exemplo, esse princípio era a água. Contrariamente à Tales, Anaximandro achou que o princípio fosse o apeíron (apeiron).
Num primeiro
momento, esse princípio pode ser entendido como o indefinido, o ilimitado ou o
indeterminado. No grego antigo, a particula "a (a)" é uma partícula de negação; já o termo "peiron (peiron)" remete à ideia de limites ou de algo que é de alguma maneira
determinado. Aprofundando a análise, o apeiron traz consigo duas noções importantes para se entender o seu
significado. Numa delas, esse princípio se aproxima daquilo que é
ilimitado espacialmente, se aproximando da ideia de infinito espacial. Na
outra, um tanto mais difícil de compreender, esse princípio pode ser entendido
como sendo de indefinição qualitativa; nesse último, podemos supor que o apeiron é formado de uma matéria
diferente de todas as outras que compõem o mundo. Sendo assim, o princípio de
tudo não pode ser formado, segundo a visão de Anaximandro, por algum elemento
objetivamente e materialmente identificável como, por exemplo, o fogo, o ar ou
a água.
Anaximandro
Anaximandro,
que foi provavelmente discípulo de Tales, nos deixou um pequeno fragmento.
A partir, entre outros, desse fragmento, Simplício fez o seguinte
comentário:
Entre os
que admitem um só princípio móvel e infinito, Anaximandro de Mileto [...] disse
que o princípio e elemento das coisas que existem era o apeiron, tendo sido ele o primeiro a introduzir este nome do
princípio material. Diz ele que tal princípio não é nem água nem qualquer
outro dos chamados elementos, mas uma outra natureza apeiron, de que provêm todos os céus e os mundos neles
contidos.
Mais
adiante, Simplício cita o trecho do fragmento de Anaximandro que chegou até
nós:
E a fonte
da geração das coisas que existem é aquela em que se verifica também a
destruição "segundo a necessidade; pois pagam castigo e retribuição
umas às outras, pela sua injustiça, de acordo com o decreto do tempo
(...)" [4]
A partir dos trechos acima, podemos concluir que apesar de Anaximandro se preocupar com o princípio de todas as coisas, ele se afastou da explicação do tipo naturalista iniciada por Tales de Mileto. Mas, por que Anaximandro não adotou algum elemento natural como princípio? Só podemos fazer conjecturas para responder a essa difícil questão.
Podemos
pensar que a ideia do apeiron possuía
fortes elementos da concepção teológica de Anaximandro. Essa hipótese não
é implausível, pois os pré-socráticos de modo geral foram influenciados pelos
atributos divinos, encontrados principalmente nos contos homéricos. Entre
esses, encontramos a imortalidade, entendida como a vida sem limites, e o poder
ilimitado.
Uma
outra explicação, essa de orientação aristotélica, acomoda a ideia de que
Anaximandro imaginava um equilíbrio de contrários. Nesse sentido, a água
não poderia ser o princípio de tudo, pois o fogo, que é o seu elemento
contrário, sofreria uma espécie de injustiça, contrariando o fragmento acima do
segundo filósofo.
Também, se a água fosse o princípio
de tudo, forçosamente teríamos que dar lugar de destaque ao seu contrário - o
fogo. Obviamente, a introdução de um segundo elemento como arqué contraria o espírito monista presente nos primeiros
filósofos.
ANAXÍMENES (c.588 –
c.524 a.C)
A filosofia de Anaxímenes encerra um ciclo da escola milesiana. Anaxímenes foi discípulo de Anaximandro e provavelmente nasceu em Mileto. Ele escreveu uma obra chamada “Sobre a natureza” da qual temos três fragmentos. Para Anaxímenes, o princípio de todas as coisas era o ar. Nesse sentido, ele se afasta do pensamento do seu mestre e se aproxima do naturalismo de Tales de Mileto. Consultando a doxografia, lemos o seguinte trecho em Aristóteles:
Anaxímenes
e Diógenes fazem do ar, e não da água, o princípio material entre os demais
corpos simples. [5]
Anaxímenes
Mas por
que Anaxímenes escolheu o ar como princípio estruturador de tudo?
A
pesquisa doxográfica aponta para a ideia de que, na visão de Anaxímenes, o ar
se presta a diversas variações; ou seja, "tudo é ar". Apesar de
se prestar a variações, o ar não perde a sua natureza para compor as coisas do
mundo. O ar constitui os outros elementos naturais por meio dos processos
de condensação e de rarefação. O processo de condensação do ar origina a
água e também a terra, enquanto o processo de rarefação origina o fogo.
Teofrasto nos fornece uma análise mais pormenorizada dos processos do
ar:
[...] [Para
Anaxímenes], a natureza subjacente é una e infinita, mas não indefinida, como
afirmou Anaximandro, mas definida, porquanto a identifica com o ar; e que ela
difere na sua natureza substancial pelo grau de rarefação e de densidade.
Ao tornar-se mais sutil transforma-se em fogo, ao tornar-se mais densa
transforma-se em vento, depois em nuvem, depois (quando ainda mais densa) em
água, depois em terra, depois em pedras; e tudo o mais provém destas
substâncias. [...] [6]
Apesar
de Anaxímenes se afastar de Anaximandro com relação ao princípio material, ele
parece se aproximar do mestre com relação à ideia de indeterminação
espacial contida no apeiron.
Assim, além de permear mundo, o ar também é indefinidamente vasto, o que
remete à ideia de ilimitação, ideia essa central para compor o apeiron de Anaximandro. Se assim é,
podemos supor que a invisibilidade do ar conforma a ideia de algo sem limites,
o que se aproximaria, como visto, das características divinas.
Também,
podemos inferir certa explicação vitalista na escolha do ar como arqué. Parece óbvio que todo ser
vivo precisa de ar para viver; aliás, quando alguém morre se costuma
dizer: ele deu o seu último sopro de ar. Essa explicação também se
aproxima do legado de Tales, pois, ao que parece, ele também procurou um
elemento que sustentasse a vida e os processos vitais, no caso a água.
A
onipresença e o vitalismo atribuídos ao ar contribuíram para que Anaxímenes
escolhesse esse elemento como o estruturador do cosmos. Essa intuição se
baseia na ideia de que o céu tal como o percebemos é feito de ar.
Recorrendo ainda às nossas percepções comuns, do céu cai chuva (água) e
de lá saem raios (fogo), elementos contrários que nascem de um elemento comum -
o ar.
CONCLUSÃO
Podemos
perceber que Anaxímenes trouxe para o seu pensamento elementos do seu mestre
mais imediato, Anaximandro, mas também de Tales, iniciador do pensamento
filosófico. Esse tipo de atitude demonstra uma certa liberdade de
pensamento, o que é característico do fazer filosófico. Também, é
interessante notar que a filosofia de Anaxímenes fez uma espécie de síntese
entre as filosofias de Tales e de Anaximandro. A contraposição de
pensamentos e a busca por uma síntese entre teorias à disposição influenciarão
e caracterizarão fortemente a filosofia ocidental. Desse modo, podemos concluir
que os milesianos procuraram se aproximar da verdade sem recorrer ao mito; ou
seja, por meio da argumentação, do espírito anti-dogmático, do criticismo
e do debate de ideias eles tentaram responder do que é feita a nossa
complexa realidade.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Metafísica. Editora Globo:
biblioteca dos séculos.
KIRK, G.S., RAVEN, J.E. & SCHOFIELD, M. Os
filósofos pré-socráticos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983 (4ª
Ed.).
PLATÃO. Coleção: diálogos. Trad. Carlos
Alberto Nunes. Ed. UFPA, 1973.
REALE, G. História da Filosofia Antiga
(v.1). São Paulo: Loyola, 1993
[1] Para a fixação das datas,
tentei seguir ao máximo as recomendações de REALE (1993) e de KIRK, RAVEN &
SCHOFIELD (1983).
[2] Utilizo a tradução de
NUNES (1973).
[3] Utilizo a tradução da
Editora Globo, p. 42. Não sei o ano e nem quem fez o trabalho de tradução.
[4] Esse trecho de Simplício
se encontra citado em KIRK, RAVEN & SCHOFIELD (1983, pp. 106 - 107).
[5] Esse trecho de Aristóteles
se encontra citado em KIRK, RAVEN & SCHOFIELD (1983, p. 147).
[6] Esse trecho de Teofrasto
se encontra citado em KIRK, RAVEN & SCHOFIELD (1983, p. 147).